sábado, 24 de maio de 2014

CNH

Sabe aqueles papos de botequim? Pois é. Dia desses, após umas cervas geladas, derrapei já meio sonolento num pensamento de Epicuro — “Por que temer a morte? Enquanto eu sou, a morte não é; e, quando ela for, eu já não serei. Por que deveria temer o que não pode ser enquanto sou?” Ele chegou instigado por aqueles papos existenciais que cheiram a mofo, típica conversa de botequim pós-breja: “De onde viemos? Pra onde vamos? Como será o lado de lá? Quem tem medo da morte? Quem não tem? E gente que vai num estalo? E gente que sofre horrores?”
Mas não é nada disso que quero falar, meu amigo. Nem sei por que comecei essa história toda. O que quero falar mesmo é sobre a renovação da minha carteira de motorista, assunto muito, mas muito mais interessante que qualquer conversa de botequim.
Minha primeira habilitação, tirada aos dezoito, durou que foi uma beleza. Depois que fiz quarenta é que tive que entrar nessa de renovação a cada cinco anos. A primeira renovação demandou até provinha. A de agora, não. Nada que um belo de um Poupatempo não desse jeito. Fui pra lá meio desconfiado. Sacumé, né? Era a primeira vez que utilizava os serviços dessa invenção “primeira classe” da burocracia estatal. Que assusta, pois os serviços do Estado estão armados de burocracia até os dentes. E a desconfiança só aumentou vendo aquele mundaréu em filas e cadeiras. Me dirigi à mocinha bem maquiada que me indicou a fila tal; sete minutos depois, passava pela triagem, recebia uma senha e seguia em direção ao Detran.
Primeiro a documentação. Coisa rápida. Eficiente. Mais uns minutinhos de espera e a foto. Mal acomodado num cubículo, a moça me manda tirar os óculos e endireitar os ombros. “Pera aí! Como tirar os óculos?” “Precisa tirar, senhor” “Você está me dizendo que vou ter de ficar cinco anos com a foto de um sujeito que não tem nada a ver comigo? Óculos fazem parte da personalidade, sabia?” “Precisa tirar, senhor” Até agora não entendo. Tiramos ambos: eu, os óculos; ela, a foto. Exame médico. Rápido. Pressão arterial. Letrinhas miúdas. “O senhor vai até o banco, paga as taxas e retorna com os comprovantes” Sabia. Agora a coisa pega. Banco. Fila. Nada! Pra minha surpresa, a agência bancária do Poupatempo estava vazia. Pagamento rápido. O fato é que quarenta e cinco minutos depois de ter entrado, eu saía. E com o protocolo na mão, para retirar a CNH dia seguinte, olha que beleza.
O que pegou mesmo foi depois. Não achava o protocolo. Como pode? Revirei tudo. Casa. Trabalho. Carro. Carteira. Nada. Só ouvindo as piadinhas dos colegas, coisa da idade, esquecimento, normal, etcetera e tal. Fui com a cara e com a coragem, levando a CNH antiga. Quando a tiro da carteira, tava lá, carimbado no verso: “retirar dia 09, após às 10:00 horas”.
Pior que perder o protocolo é achar que perdeu o protocolo que você nunca recebeu. Como pode alguém perder uma coisa que nunca teve? Se nunca teve, não pode perder. E se mesmo assim acha que perdeu, é porque em algum momento teve ou, porque a idade avança mesmo e seus amigos estão certos...

5 comentários:

  1. Adorei o blog!! Teria muito a comentar, medo da morte, o prazo da CNH q não dura quase mais nada, cervas com amigos, banco, fila... mas aí vc poetizou cada tema, cada burocracia diária majestosamente.
    Meus parabéns pelo blog. Muito bom!

    ResponderExcluir
  2. Valeu meus queridos! Lu, e o que não é a crônica senão uma lente de aumento nesses fatos singelos do nosso dia. Agora, cervas com os amigos é tudo de bom, não? Ainda mais embaladas por um bom papo. Venha sempre, Lu, enriquecer o blog com seus comentários inteligentes. Abços!

    ResponderExcluir

Comunicado

O autor informa que suas crônicas estão sendo publicadas com exclusividade na página Crônica do Dia ( www.cronicadodia.com.br ). Convida...