Lembro-me que me acordei com uma
sequência de tapinhas na face, pensando estar mergulhado num sonho oriental. O
ataque foi tão cruel, que a sinuosidade da serpente azul até agora provoca
sustos e calafrios naqueles que queriam apenas se divertir.
Tudo começou muito estranho, com uma
nuvem branca cobrindo a cidade. Questionávamos se seria um nevoeiro denso -
incomum num final de tarde -, ou apenas poluição, tão fácil de enxergar num céu
de São Paulo em tempos invernais.
Estávamos sentados no chão, até então distraídos,
conversando, bebendo, contando piadas de sacanagem, tratando a noite como mais
uma em centenas de dezenas de noites, em que saborear o aconchego das amizades,
do riso leve, da vida descompromissada, é o que existe de mais importante.
O primeiro e sorrateiro ataque
aconteceu por volta das onze, e nós nem nos demos conta. Depois, num papo de
bar, regado a vinhos e chás, quando os efeitos do veneno começavam a nos deixar
sonolentos, percebemos que todos tinham, na medial da coxa esquerda, uma ferida
aberta.
Naquele momento, concluímos o óbvio:
tínhamos sido atacados, e aí, meu amigo, já era tarde. O efeito não demorou, e mesmo
embaralhada por densa camada de névoa, ou poluição, sei lá, a consciência percebeu
a armadilha: havíamos sido fisgados, sem dó nem piedade, pela beleza exótica de
Ariella.
Ainda que pudéssemos imaginar o tamanho
dos riscos que corríamos, a beleza da serpente, que ondulava pelo assoalho, era
tão envolvente, que simplesmente fez com que perdêssemos a noção do perigo. Ali
não era a cobra venenosa que rastejava, e que vibrava e que impactava; ali era
simplesmente Ariella, com seus inimagináveis tons de azul, que numa hora eram
de um brilho visceral, noutra, de um opaco gritante (que fazia destacar o couro
branco). Mesmo porque, quem imaginaria que nas imediações da Vila Mariana,
fosse existir beleza tão exótica quanto perigosa?
Acho que fomos robotizados. A partir
daquele momento não estavam mais ali o Jota, o Fernando, o Gui, o Sergio.
Viramos zumbis. Estávamos a serviço da ardilosa serpente, que com seus jeitos e
trejeitos, movimentos que iam e vinham, que subiam e desciam, nos encantava de
tal forma que enxergávamos - ah, e todos enxergaram - um sorriso caliente nos
dizendo o que fazer (como se cobra sorrisse!).
A sedução foi tamanha, meu amigo, que
repetimos a dose. Sem titubear, entregamos a medial da coxa direita para ela.
Ali, não importava mais nada. Só queríamos saber de nos jogar nos braços flutuantes
de Ariella.
Mas sobrevivemos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário