Pelo vidro do banheiro vejo, enquanto
tomo banho, a chuvarada que encharca todas as ruas e casas e carros dos Campos Elísios,
esse bairrinho simples de Taubaté. Na Oswaldo Cruz, molhada e branca, o desfile
de carrões é a própria cara da decepção ‒‒ mais um fim de semana de chuva e
frio nas praias de Ubachuva, perdão, Ubatuba.
Agorinha há pouco li, com enorme
tristeza, a notícia de que o Paraitinga, nas últimas horas, já tinha subido
quatro metros, invadindo as casas ribeirinhas, e causando estrago e destruição
aos poucos pertences daquela gente sofrida que mora às suas margens.
Caso não saiba, meu amigo, em 2010 o
Paraitinga transbordou, coisa de quinze metros, inundando praticamente todo o
município. Destruiu casas e casarões, deixou restaurantes, lojinhas, bancos e
miudezas debaixo d’água, pôs abaixo a própria casa do Altíssimo ‒‒ a igreja de São Luiz de Tolosa, uma construção do
século 19, que não resistiu ao aguaceiro e desmoronou solenemente, torre por
torre, parede por parede, até sobrar um monte de entulho.
Lembro-me da foto de um jornal que
mostrava a cidade submersa. Pouca coisa sobrou, somente as casas do alto do
morro. O centrinho simpático, a Praça Oswaldo Cruz de tantas marchinhas e
carnavais, os restos da igreja, literalmente debaixo d’água.
Naqueles dias, a cúpula do Governo
deixou os frios gabinetes para desembarcar na cidade sitiada, com ares sisudos
de extrema preocupação, com promessas de recuperação geral, com liberação de
verbas em caráter emergencial, com cadastramento de comerciantes, com
facilidades, financiamento, liberação de créditos e coisa e tal, e com a
promessa de solução para o problema do transbordamento do Paraitinga.
No entanto, diante das novas
notícias, vejo que após três anos, se alguma coisa foi feita, de nada
serviu. Uma chuvinha mequetrefe na
cabeceira do Jacuí, em Cunha, que deságua no Paraitinga, e o riozão, como um candidato
a genro, bota de novo seus pés enlameados e suas pretensões espúrias na casa
dos futuros sogros, sem ser convidado.
Penso na sofisticação de um garfo.
Dentes arrojados, leve e delicado. Até então, as pessoas cortavam o alimento
com a faca e comiam com as mãos. E o saca-rolha? Desde sua criação, o espiral metálico
evoluiu, e novas formas foram criadas com mecânica mais adequada à operação de
retirar a velha rolha. Que delicadeza e precisão. E o anticoncepcional? Uma
revolução social. O surgimento de uma nova classe de mulheres. Os óculos. A
cama. O edredom. O copo. A escova de dente ‒‒ fantástica! E o fio dental? A cadeira. O chuveiro. O
sabonete. A chave. A taça de vinho. O espremedor de laranjas. O secador. O
chinelo. A porta. A agulha. O travesseiro. O cortador de unhas. O pente. O
sapato. O abridor de latas. O canudinho.
Há tempos que se discute no Brasil a
instalação de um trem-bala ligando São Paulo ao Rio de Janeiro. Trem-bala...
Olha só que coisa fabulosa. Os chineses, outro dia, inauguraram a linha de
trem-bala mais longa do mundo, ligando Pequim a Guangzhou, num total de 2.298
quilômetros. Uma viagem que durava vinte horas vai durar oito, graças à
velocidade que ele atinge, de 300 km/h. Há trens-balas que passam debaixo de
montanhas e até de rios e mares: o Eurotúnel, por exemplo, que avança pelo
Canal da Mancha, ligando a França à Inglaterra, uma das sete maravilhas do
mundo moderno.
Mas as criações humanas não param por
aí. Aliás, longe disso. E a sofisticação, a técnica, a precisão são de arregalar
os olhos. No mundo eletrônico, por exemplo, temos uma profusão de invenções e
novas tecnologias, tudo para encantar e satisfazer as necessidades mais
exigentes da raça. Pipocam smartphones, celulares, tablets, notebooks,
ultrabooks, HDs, GPS, DVDs, home theaters, computadores, máquinas fotográficas
digitais, geringonças eletrônicas de tudo quanto é tamanho e gênero, de todas
as cores e para todas as idades.
E pensar que no início dos tempos a
tecnologia mais avançada usava a pedra como matéria-prima para a confecção de
objetos, utensílios e ferramentas. O homem, para proteger-se do frio,
socorria-se de peles de animais e escondia-se em cavernas. E para se alimentar,
cozinhava a carne em buracos abertos no solo. Depois apareceram os metais, o conhecimento
da escrita, outra invenção extraordinária da humanidade.
O que dizer então dos veículos de
transporte, carroças, carros de boi, bicicletas, triciclos, quadriciclos,
motocicletas, carros, caminhões, ônibus, trens, bondes, metrôs, lanchas,
barcos, navios, submarinos, helicópteros, aviões, foguetes?
E das ciências, então? A filosofia. A sociologia. A antropologia. A
geologia. A paleontologia. As ciências políticas. A história. A linguística. A
pedagogia. A economia. A administração. A contabilidade. A geografia. O
direito. O serviço social. A arqueologia. A psicologia. As letras. As artes
plásticas. A moda. O jornalismo. O secretariado. A astronomia. A física. A química. A
engenharia. A arquitetura. A matemática. A biologia. A anatomia. A genética. A
fisiologia. A agronomia. A medicina. A nutrição. A educação física.
Enorme e vasto o conhecimento humano.
Com tudo isso, com tamanha abrangência e diversidade de saber, com essa reserva
de conhecimento acumulada em séculos e séculos de existência, eu me pergunto:
será que é difícil encontrar uma soluçãozinha digna para os problemas das
enchentes e deslizamento de encostas que assolam o país durante o janeirão das
águas? Não há uma viva alma nesse mundo, que ocupe um cargo de gestão ‒‒ um prefeito, um governador, um presidente ‒‒, capaz de se sensibilizar e resolver os problemas de
uma grande parcela do povão?
Janeiro pode ser o mês das chuvas,
mas não precisa ser o mês das tragédias, dos deslizamentos, das famílias
retiradas de suas casas e transferidas para escolas e igrejas, das vidas
ceifadas.
Desligo o chuveiro sacudo, por saber
que falta dinheiro para ações preventivas nos rios e encostas, mas dos cofres
públicos jorram cascalhos para a Copa, que vai encher de alegria a moçada.