sábado, 26 de outubro de 2013

A borboleta (II)

Como disse na semana passada — se você não leu, meu querido, ainda há tempo; volte aí no blog ou consiga um número anterior do intrépido Matéria-Prima e veja lá a primeira parte da história, veja —, o mistério das borboletas mortas intrigou o nosso amigo. Duas borboletas iguaizinhas. Azuis. Mortas. Gêmeas? Clones? Uma empacotou lá, no trajeto da sua caminhada, e a outra sentiu o baque e empacotou no seu quintal? Ele lembra que certa vez viu a notícia da morte simultânea de dois frades gêmeos ocorrida na Flórida. Morreram de enfarte no mesmo dia, com 92 anos, num intervalo inferior a 12 horas.
Deixa a sua caneca já quase sem café no chão, tira os seus óculos porque de perto está vendo melhor sem, e se põe de cócoras para examinar com mais acuidade o delicado inseto. Com um pequeno graveto, começa a cutucar a borboletinha, que parece dura como um pedaço de osso.
José Saramago disse um dia que a águia é um animal magnífico. Pois ele, rendendo homenagens ao saudoso escritor, diz que a borboleta é um inseto magnífico. Vê que as seis patas continuam lá, como também continua lá o par de antenas sensoriais. Nenhum arranhão, nenhum indício de que tenha sido assassinada. Sim, porque num primeiro momento lhe veio à mente a remota possibilidade de seu cão ter ressuscitado da hibernação, e ter feito com ela o que não faz há tempos com as baratas, mas o exame superficial estava lhe dizendo exatamente o contrário.
Será? Põe a mão no queixo e tenta puxar da memória a imagem da suposta irmã gêmea, para se convencer de que se trata de pura divagação de quem não tem o que fazer, mas a primeira coisa que pensa é o que mais lhe chamou a atenção na borboleta morta: a combinação de cores, o azul cobalto, o preto nas extremidades.
Volta para sua cadeira, para sua caneca, insatisfeito e incomodado. Toma mais uma golada, mas o café, outrora quentinho e saboroso, agora dorme frio. Se seu avô ainda estivesse aqui, lhe mandaria parar de ficar pensando asneira e ir logo fazer um joguinho: borboleta na cabeça!
Se realmente as borboletas eram gêmeas, e mediante algum tipo de comunicação sensorial, uma sentiu a morte da outra, ele não sabe. Só sabe que aquele acontecimento pífio do começo do dia lhe tirou do prumo. Não com a morte em si, pois ele tem consciência de que todos nós morreremos um dia, mormente as borboletas, que duram no máximo dez meses. Mas com a morte solidária. A possibilidade de existir um elo misterioso, a comunicação sensorial entre insetos, que dirá entre humanos, é realmente sensacional. Que morte digna!
Mas o mais apavorante aconteceu depois, quando ele já estava se preparando para entrar em casa: eis que surge no quintal uma terceira borboleta, idêntica às outras, azul, preta. (Trigêmeas? Aí já é demais!!!) Ela pousa suavemente próximo à casa de Bela. Ele ali, perplexo, vendo a cena, como se fosse uma final de Copa do Mundo, a caneca já tremendo em suas mãos. Passam-se alguns minutos e, para o seu espanto, tão placidamente quanto pousou no chão, ela tomba cinematograficamente para um dos lados.
Morreu.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

A borboleta

Encontra a empregada terminando um bolo de chocolate na cozinha. Do radinho de pilha vermelho e empoeirado, que funciona há décadas em cima da geladeira, escuta o locutor informar que o seu Benedito está querendo vender uma geladeira seminova, cor branca, Brastemp, pela bagatela de R$ 300,00. Enche uma caneca de café, que logo percebe trincada — bem a caneca azul comprada em Monte Sião, xodó de sua mulher —, segue até o quintal, onde arrasta uma cadeira até a parte assombreada, bem debaixo da jabuticabeira.
Aí está uma das vantagens de se morar em casa, e não num apartamento, ele pensa. O quintal. O dele é generoso, com muito espaço, metade terra, metade cimento. Ao fundo, onde o limbo dá lugar ao ocre macio da terra, tem uma jabuticabeira, uma macieira, uma pequena horta com couve, arruda, hortelã, cebolinha e alface; num dos cantos, a dama-da-noite, que perfuma a casa toda lá pelas sete e meia; no outro, o lírio pomposo da patroa.
Os passarinhos adoram o seu quintal. De manhã é uma festa. Cantam esfuziantes sobre a macieira, namoram, passeiam e chegam quase a entrar na cozinha à cata de migalhas de pão; roubam até a comida do seu cão. Quantas vezes não acordou ao som da sinfonia e fez amor com sua mulher...
Quem também aprecia o seu quintal é Bela. Um poodle branquinho que quando mais novo patrulhava o seu território com faro policialesco, proibindo a visita de gatos e passarinhos, mas que hoje se entrega à preguiça normal da idade, ritos finais de uma existência sólida e só. O que falta é um passarinho fugir da chuva e adentrar a sua casa, se instalar debaixo de seu cobertor. É só o que falta, ele pensa.
Fica a saborear o café ao som dos passarinhos. É um dia espetacular. O céu veste-se de azul — não tem uma nuvem sequer —, sol resplandecente, temperatura baixa, 14 graus no máximo. Uma beleza de dia vai fazendo, a Bela já andando preguiçosamente pelo quintal para tomar o seu solzinho.
No meio desse momento introspectivo contemplativo profundo, lhe chama a atenção uma borboleta azul morta no chão. É uma imagem que nem notaria se, na sua caminhada pela manhã, quando já estava perto do fim, não tivesse desviado de uma, deitada sobre uma folha de figueira, também morta, também azul.
E a que vê no quintal é idêntica àquela que viu há pouco. Será possível? Seria uma ilusão de ótica? Ou seriam borboletas gêmeas? Engasga com o riso fácil que brota do pensamento idiota. Isso não existe, diz a si mesmo em tom professoral. Se bem que, questiona-se segundos depois, num mundo de tantos mistérios e possibilidades, em que até o “chupa-cabras” foi parar em Nova York, conforme notícia que viu outro dia nos jornais, não é de se espantar que um cientista maluco qualquer, investido do poder soberano de Deus, tenha dado cabo da criação de um clone de borboleta. E se são clones, diz a si mesmo, são gêmeas. Uma empacotou lá, a outra sentiu o baque e empacotou aqui.
Perdoe-me a interrupção, meu amigo, pois imagino que esteja curioso pra ver onde tudo isso vai dar. Mas o espaço aqui é pequeno e me impede de lhe contar a história toda de uma só vez. Por isso, peço a você um pouquinho da paciência dos monges. Semana que vem, sem falta, coloco um ponto final nesse mistério.
 

sábado, 12 de outubro de 2013

Cracóvia, Varsóvia, Amsterdam..

Gosto de nomes de cidades. Alguns. Da sonoridade. Não sei até que ponto isso é relevante ou serve para alguma coisa. Deve ser tão importante quanto uma ferpa fina encravada na sola dura do meu pé. Mas você pode brincar com os sons modificando os significados, por exemplo; pode ler poesia explorando ritmos e sonoridade; pode até procurar cacófatos em títulos jornalísticos, olha que coisa interessante.
Baseado apenas no critério da sonoridade, o repertório de nomes de tudo quanto é tipo que chama a atenção apenas pelo timbre é grande. Há pessoas que gostam, por exemplo, de libélula, saudade, alameda, apodítica, sacrifício, guatemalteco, pirilampo. Tem gente que detesta zebu, espectro.
Mas o meu negócio é cidade. Nome de cidade. Não sei se a sonoridade do nome influencia em alguma coisa; de repente, alguma dimensão ainda não explorada pela física quântica; no índice de desenvolvimento humano (IDH), vai, ou na capacidade das cidades em proporcionar uma vida mais feliz aos seus moradores, com tempo para umas brejas, churrasco, mulher, futebol e cineminha.
Bacana é você associar o som da palavra a alguma coisa que lhe vem à mente. Veja bem, estou falando de uma imagem, e aqui não importa o significado do vocábulo. Ao contrário, quanto mais esdrúxula a imagem, melhor. Mais divertido. Mas não pode inventar. Tem que ser a imagem que vem, por mais chinfrim que seja.
Por exemplo: gosto do nome da cidade polonesa que irá receber a próxima Jornada Mundial da Juventude. Cracóvia. Nome sólido. A imagem que me vem é a de um estilete despedaçando um travesseiro de penas de ganso. Não sei por quê! E isso não importa, ô! O que importa é a imagem... Talvez ela venha viajando das profundezas de meu inconsciente pra me dizer alguma coisa.
Assim como Cracóvia, gosto de Varsóvia. Vejo algo maciço nele, de aço, com sustância. Varsóvia me lembra a noite, uma noite molhada, fria, com ruas mais parecendo espelhos de água, lâminas que se formam e passam a refletir o alaranjado das luzes; pessoas andando agasalhadas, ushanka na cabeça.
Ubatuba também me soa bem. Vejo a figura abolachada do João Bobo. Devem ser memórias infantis. Paraty. Almyr Klink. Um veleiro. Essa está maculada. Mariana é um nome doce. Vejo a minha avó sentadinha no sofá da sala, assistindo ao Silvio Santos e fazendo tricô.
Tenho um fetiche todo especial por Amsterdam. Amsterdam. Que bem me faz aos ouvidos. As imagens são muitas e multifacetadas. Um casaco de veludo. Jovens com livros nas mãos. Um sujeito rouco. Chocolate quente. A diferença de Amsterdam para os outros nomes é que ele me chama, me atrai. Como um magnete.
Não para comer steak com feijões, perambular de barco pelos canais, passear pelo Vondelpark de bicicleta, ver com os meus próprios olhos os desenhos de Anne Frank na parede de seu quarto, ou flanar livre, leve e solto pela Red Light District. Isso tudo eu já conheço. Sem desprezar as inúmeras justificativas esotéricas, viagem astral, fenômenos sobrenaturais ou o diabo a quatro, o que sei é que Amsterdam vive em mim. E eu nela. Faço sempre uma revisita. Uma viagem à essência da vida. Um déjà vu.

                             

sábado, 5 de outubro de 2013

Mudança de perspectiva

Uma vez um discípulo de um filósofo grego recebeu ordens de seu Mestre para durante três anos dar dinheiro a todos os que o insultassem. Quando esse período de provação terminou o Mestre lhe disse, “Agora você pode ir a Atenas para aprender a Sabedoria.” Quando o discípulo estava entrando em Atenas, encontrou um certo sábio que ficava sentado junto ao portão insultando todos os que iam e vinham. Ele também insultou o discípulo, que deu uma boa risada. “Por que você ri quando eu o insulto?” perguntou o sábio. “Porque durante três anos eu paguei por isso, e agora você me deu a mesma coisa de graça”, respondeu o discípulo. “Entre na cidade”, disse o sábio. “Ela é toda sua...” (A Arte da Felicidade – Um Manual para a Vida – Sua Santidade, O Dalai Lama e Howard C. Cutler, pg.194).
Os Padres do Deserto do século IV, um grupo de excêntricos que se retirou para os desertos de Scete, para uma vida de sacrifício e oração, ensinavam essa história para ilustrar o valor do sofrimento e das agruras. Ainda segundo Cutler, não foram apenas as agruras que abriram ao discípulo a “cidade da sabedoria”. O fator primordial que lhe permitiu lidar com tanta eficácia com uma situação difícil foi sua capacidade de mudar de perspectiva, de encarar a situação a partir de um outro ângulo.
Aldo Novak, numa entrevista dada a Marcia Peltier (há um vídeo no You Tube com a íntegra da entrevista), fala que realidade é uma coisa que muda de pessoa pra pessoa. Duas pessoas podem ver a mesma situação, e a partir da mesma experiência ter realidades completamente diferentes. Por exemplo: ele estava viajando, e descobriu que seu voo havia sido cancelado. A informação é de que teria de pegar um ônibus até aquela cidade maravilhosa que tanto queria conhecer, e, que naquele momento, tinha o aeroporto fechado em razão do mau tempo. Umas oito horinhas. Ele e mais um grupo adoraram a oportunidade que teriam para conhecer algumas outras cidades por terra. Outros, não. Rolou estresse, irritação, inconformismo, e mais uma infinidade de emoções negativas. A realidade mesmo não existe, segundo Novak; existem, sim, percepções da realidade. Você pode ver a situação de uma maneira que o beneficie. Não se trata do efeito Pollyanna. Você pode enxergar uma situação de maneira positiva e marcar gols a seu favor. Ou não. A escolha é sua.
Sua Santidade, o Dalai Lama, diz: “Parece que muitas vezes, quando surgem problemas, nosso enfoque se estreita. Toda a nossa atenção pode estar concentrada na preocupação com o problema, e nós podemos ter a sensação de que somos os únicos a passar por tais dificuldades. Quando isso acontece, creio que ver as coisas de uma perspectiva mais ampla pode decididamente ajudar.”
Com base em suas pesquisas filosóficas, Sergio Geia afirma que tudo isso diz respeito ao estado mental do ser humano. O problema está na nossa mente. E a solução também. Técnicas mentais são muito bem-vindas, e podem nos ajudar a tocar a vida, pois, livres de problemas — ah, camarada!, na vida tem isso não! Ampliar o enfoque tendo consciência de que não somos os únicos a sofrer aquilo. Procurar um ângulo mais positivo (marcar um gol a nosso favor). Encontrado, insistir, enfocar nele várias vezes. Fazer comparações: comparar situações, problemas em si. Ninguém acredita, mas essas técnicas relativamente simples podem ser instrumentos poderosos para nos ajudar a resolver os problemas diários da vida. É sério!!! Ah!, meu querido, nem só de crônica vive o homem...

Comunicado

O autor informa que suas crônicas estão sendo publicadas com exclusividade na página Crônica do Dia ( www.cronicadodia.com.br ). Convida...