sábado, 28 de dezembro de 2013

Mais um ano se passou

É... Mais um ano se passou... Eu encontro as pessoas nas ruas, paro pra conversar, e num certo momento todas elas falam a mesma coisa: “Nossa! Como este ano voou?!” E a sensação que temos é que a vida voa mesmo.
O final do ano sempre tem aquelas matérias chatas na televisão. O que fazer para a ceia de natal. Do réveillon. Opções de ceia delivery. O que fazer para curar a sua ressaca do dia seguinte. Que roupa vestir na passagem do ano. Pular as sete ondinhas. Comer lentilha. O que fazer com o décimo terceiro. Ah!, é sempre a mesma coisa... Você nunca viu? Pague suas compras à vista, não fique no cheque especial, peça descontos, gaste a sola dos sapatos... Afe! Sempre a mesma coisa. Não muda! Um saco!
E tem aquela coisa de fazer o balanço da vida, como foi o ano, o que fez de bom, de ruim, o que deixou de fazer e se arrependeu, o que fez e se arrependeu também, planejar o ano vindouro. Nunca dá certo, né?
Neste exato momento – sim, meu amigo, neste exato momento em que estou escrevendo esta crônica, que imaginava uma e que parece estar a crescer outra – me vem à cabeça minha mandala. Yes! Eu tenho uma mandala! E ela está cheia de projetos, metas e o diabo a quatro. Faz tempo que não dou uma bisbilhotada nela.
Pois vejamos. No plano espiritual: vejo uma foto do sorridente Dalai Lama. Um barquinho singrando o mar azul. Está escrito: Compaixão pelo próximo. Budismo e Espiritismo (conhecer, pesquisar). Paz interior (meditação, contemplação). Simplificar a vida. Reler “O Irmão de Assis”. No plano físico, vejo fotos de Philip Roth e J.M. Coetzee. Está escrito: Publicar. Caminhar três vezes por semana. Yoga duas vezes por semana. Não comer carne duas vezes por semana. Beber dois litros de água por dia. Diminuir ingestão de açúcar. No plano afetivo e mental: vejo fotos de Fortaleza, vejo a foto de alguém tocando violão num crepúsculo. E está escrito: Violão. Tocar sempre que puder. Passear sempre. E algumas palavrinhas soltas: presença, diálogo, profundidade, respeito, atenção, feedback, carinho. Está tudo lá.
Os NÃOS. Não reli “O Irmão de Assis”. Não publiquei. Não pesquisei nem conheci o Budismo e o Espiritismo. Não meditei nem contemplei nada. Não faço mais yoga (abandonei depois de uns três anos). Não bebi dois litros de água por dia. Não passeei muito, quanto mais sempre. Os SINS. Caminhei três vezes ou mais por semana. Inclusive, agora corro. Não comi carne duas vezes por semana, acho que deixei de comer carne até mais dias (almoço no Vegetariano). Diminuí consideravelmente a ingestão de açúcar. Toquei violão. Agora, por exemplo, estou curtindo um som chamado Jack Johnson. Como vivi todo esse tempo sem conhecê-lo? Uma luz. Estou tentando arranhar Upside Down. Os MAIS OU MENOS: não publiquei, mas o livro está em gestação. Na editora. Final de janeiro sai. Fui mais ou menos presença, diálogo, profundidade, respeito, atenção, feedback, carinho. A gente é sempre mais ou menos nisso...
Espremendo tudo, acho que 2013 foi o ano que me mostrou dois caminhos: o do autor e o do personagem. Escolhi o primeiro. E não tem mais volta.
P.S.: agradeço com muita sinceridade a você que me lê e que me leu durante este ano. Obrigado! Meu e-mail (sergiogeia@uol.com.br) está à sua disposição, sempre, para comentários, críticas ou simplesmente para trocarmos figurinhas. Ótimo ano novo pra nós todos! Com muitos projetos, metas e o diabo a quatro! E REALIZAÇÕES, é claro!

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Cadáver

Na melancolia do domingo à noite, depois de mandar uma pizza de calabresa pra dentro, debaixo de uma coberta quentinha já pensando nos problemas da segunda, eu senti, senti a frase aos pedaços invadindo o buraco do meu ouvido, frase que iria me acompanhar insistente durante toda a madrugada adentro: “Eu vi que era um cadáver ali”. Era a voz do professor Roberto Juliano sendo entrevistado pelo Abujamra, dizendo o que pensou ao se deparar com um pedaço de bife no prato. Depois de anos se lambuzando de carnes alheias, o professor, influenciado por sua filha, tornou-se um vegetariano.
Eu admito que nunca pensei nesse negócio direito. Por esse ângulo, então? Cadáver? Imagina aí você, sentadão numa churrascaria, mandando ver costela, picanha, alcatra, cupim, linguiça, coração, coxa, sobrecoxa, um boi inteiro, vai. Um boi só, não! Boi, porco, galinha, todos dilacerados pra você comer suas melhores partes, as mais macias, as mais suculentas e saborosas. Que desmancha-prazer esse professor, não? Cadáveres? Acordo de repente e começo prestar atenção na tevê. O professor teve diversas recaídas. Pequenas recaídas. Grandes recaídas. Mas o que me chama a atenção é o apelo que ele faz: “Esse negócio que a gente chama de carne é antes de tudo sofrimento. Sofrimento de animais como nós. O que está sendo feito neste planeta não deve continuar. A matança tem que parar”.
Penso no que li a respeito. Tá lá na memória, mas perdi a senha, he, he, he! Isso é Chico, tá? Há quem compare a matança desenfreada de animais ao holocausto. Elizabeth Costello usou essa imagem num de seus seminários: “O crime do Terceiro Reich foi tratar as pessoas como animais”. Issac Bashevis Singer fez um de seus personagens comparar o comportamento humano em relação aos animais com o comportamento dos nazistas em relação aos judeus. “Ele não diz que os crimes são igualmente maus, mas que ambos são baseados no mesmo princípio, de que poder é direito, e que os poderosos podem fazer o que quiserem com aqueles que estão em seu poder” (citado por Peter Singer, pg.103, A vida dos animais, J.M.Coetzee). O próprio Coetzee usou dessa técnica com a Costello.
Lembro-me daquele garotinho que se recusava a comer polvo. Ele perguntava onde estava a cabeça do bicho; a mãe, em vão, tentava explicar que o açougueiro tinha cortado, e que ali estavam as perninhas pra ele comer. “Ele morreu?”. “Morreu”, dizia a mãe. “Por quê?”. “Pra gente comer”. No seu purismo, livre dos condicionamentos humanos, ele retrucou dizendo que “não gostava que eles morressem”; que os animais tinham que ficar em pé.
Fico a imaginar o que alguém (claro, uma imagem hipotética, a imaginação pode tudo), um purista, alguém de um outro mundo, como o garotinho do vídeo, não maculado, não estragado pela civilização, pela diversidade retórica justificando tudo, o que esse alienígena, ainda livre das mais refinadas explicações filosóficas iria achar de tudo isso.
Longe de ser Deus, o professor quer mudar as pessoas. Não quer mais saber dessa matança, de reunião em torno de churrasqueiras e churrascarias. Ele pode até não ser Deus, mas já pode se orgulhar de produzir criaturinhas. Não tão habilidosas como o homem, mas não menos densas. Essa pulga aqui atrás da minha orelha? O que é senão obra e graça desse professor?
P.S.: excepcionalmente postado nesta sexta-feira. Bom Natal, meus queridos! Valeu!!!
 

sábado, 14 de dezembro de 2013

Adeus, companheiro

Depois de dezoito anos resolvi trocar o meu travesseiro. Isso é muito sério, amigo. Seríssimo. Se há alguém que me entende nas profundezas de minhas agruras; se há alguém que me ajuda a escarafunchar as raízes de minhas idiossincrasias; se há alguém que, silenciosamente, acolhe com boa vontade minhas lágrimas, minhas babas e meus fios de cabelo; se há alguém que é pau pra toda obra, esse alguém é o meu travesseiro, fundamento de uma existência sólida e afortunada, de uma manhã bem disposta e feliz. Você pode não ser feliz por muitas razões. Mas se você estiver insatisfeito com o seu travesseiro, apequenado e infeliz será para todo o sempre, a menos que o substitua. Imediatamente.
 Mas, não era o caso. Ao contrário. Tenho de admitir que se dependesse apenas de minha singela opinião, eu ficaria com ele por mais dezoito anos, ou até o fim da vida, quem sabe? Nos damos bem, mesmo juntos há tanto tempo. Eu já o conheço o suficiente para entender que a química que deve haver entre nós é tão importante quanto a química do amor, da paixão, do sexo. E a química no caso é perfeita. Por que trocar então, o nobre leitor deve estar se perguntando. Ora, meu amigo. Na vida, em todas as suas dimensões, precisamos aprender a ter flexibilidade mental, e quem divide leito e vida precisa praticar o exercício da audição e da reflexão de vez em quando, senão, ficam os travesseiros e vão-se os amores.
Na loja, a tentativa consistia em achar um substituto à altura. Percebi que a tarefa não seria fácil. Ainda que o travesseiro fosse confortável, aconchegante, macio, ele era virgem, e isso era um grande problema. Como todo travesseiro virgem, a impressão que dava era a mesma que você tem quando come uma fruta verde. Faltava vida naqueles mauricinhos, um calorzinho, vai. “A gente entende”, dizia-me a vendedora, com aquele jeito amável de ser. “Não se trata de uma simples troca de um objeto por outro”. Pensei: “objeto? Travesseiro? O meu? Quando? Onde?” 
Meu travesseiro tinha história, e por mais velho que fosse, ele guardava em sua essência dezoito anos de suores, babas, cabelos e o mais fino e doloroso repertório de pensamentos, que me fizeram marchar por rotas desconhecidas, que me fizeram tomar decisões, que me fizeram ser o que sou, embora às vezes tenha a impressão que não sou o que pareço ser. Isso dava a ele um valor maior, muito maior que qualquer travesseiro de penas de ganso. Lembro-me das viagens, a trabalho ou a passeio. Graças a ele, eu estava lá, hirto, firme, entusiasmado, no workshop ou nas areias da praia. Me sustentou macio, aconchegante, nas vitórias esmeraldinas, como também me aguentou sorumbático nas passagens de época, em que o Palestra quis dar uma flanada por outros mares, respirar novos ares, arejar a mente. Recebeu lágrimas quando meu velho partiu, equilibrou minha cabeça quando algumas máscaras caíram.
Cheguei em casa e pus os dois lado a lado. Minha mulher parecia assustada com minha reação. Deve ter pensado: endoidou de vez, mas não disse nada. Um, moderno, fresco, limpo, com formas arrojadas, mas estranho ainda. Um mauricinho, isso sim. O outro, velhinho, amarelo, caído. Lembrei-me de Dorian Gray. O peso dos anos tinha deixado meu amigo deformado. Isso era nítido na comparação com o outro. Adeus, companheiro.
“Meu bem, espere duas semanas. Depois você dá fim, tá!?”

sábado, 7 de dezembro de 2013

Caixões e caixotes

Perto do quilo onde eu almoço tem uma funerária que expõe aos mais chegados caixões com as cores e o escudo de times de futebol. Aqueles que sempre vejo estão esperando candidatos palmeirenses, são-paulinos e corintianos.
Ou a rotatividade é muito grande, ou ultimamente estão morrendo mais santistas, lusitanos e flamenguistas. O fato é que estão sempre lá. Os três. E, já dando um cartão vermelho para a primeira opção, noto, muito disfarçadamente, para não chamar a atenção — sim, porque de repente, o proprietário, louco por um negocinho, e sabedor de minhas preferências esmeraldinas, pode pensar que exista algum interesse de minha parte, e já queira implementar uma venda futura, o que na verdade é absolutamente falso — o surgimento, dia a dia, de uma pequena camada de pó, o que denota, decididamente, falta de zelo da faxineira e longevidade para os caixões torcedores.
O que acontece, na verdade, é que a loucura humana não tem limites. Adquirir um caixão temático não é novidade nenhuma. Em Gana, por exemplo, isso é muito comum, e, de acordo com os costumes e tradições locais, é sempre notícia — pra nós, um tanto quanto bizarra — o músico que foi enterrado dentro de um caixão-piano, ou o pescador — essa é demais — que depois de morto, foi engolido por um peixe enorme (o caixão-peixe), ou o caixão-projetor de filme. Mas a demência a que me refiro não é a dos africanos. Não! Esses peixinhos e projetores? Não! Isso é perfumaria.
Ultimamente venho declinando os convites alvissareiros para uma flanada sem compromisso por entre túmulos e crisântemos nos cemitérios locais, de modo a depositar uma florzinha que seja na casa derradeira de nossos entes queridos, que já se foram, mas que vivem em nossos pensamentos e corações. Porém, pelo que me recordo, era muito comum encontrar verdadeiras mansões, obras faraônicas, jazidas inteiras de mármores e granitos, que servem pra quê, eu lhes pergunto? Pra quê? Hein? Alguém se atreve? Que servem de moradia para o nada, ou, tá, sejamos mais delicados, que servem de moradia para a casca, que já era. Ou alguém acha que nós somos a casca, e que o que tá lá é um pedaço da essência humana?
Mas esses dias sucumbi a um desejo mórbido e insistente, e parei pra dar uma espiada nuns caixõezinhos. Sem interesses subliminares, é claro. Mais instigado pelos torcedores de madeira, que continuam lá, em pé, hirtos como a guarda do Castelo de Windsor. Conversando, descobri que tem caixão de tudo quanto é tipo: de madeira maciça de carvalho, de mogno, de vime, tem caixão estilo americano, europeu, aveludado por dentro, com ventilador, cama ajustável e descanso de punho, he, he, he! “É pro morto ficar mais confortável?”, não resisti.
Gastar dinheiro construindo mansões em cemitérios, ou comprando caixões luxuosos, é o cúmulo da loucura. Quando eu morrer, podem jogar a minha casca num caixote, o mais porcaria que tiver. Neca de petibiriba de caixão de luxo. O melhor seria o forno mesmo. Seria o ideal. A forma mais respeitosa. Muito mais digna. Depois, que mandem as cinzas para o mar, para a praia da Fazenda.
Mas o forno infelizmente não está ao alcance da ralé. E ainda não existe crematório público, ideia, a meu ver, que deveria ser abraçada com afinco pelas autoridades. Pois então, que me mandem ao caixote mesmo. Não tem problema. E que venham as formigas. Tô nem aí.

 

Comunicado

O autor informa que suas crônicas estão sendo publicadas com exclusividade na página Crônica do Dia ( www.cronicadodia.com.br ). Convida...