sábado, 25 de maio de 2013

O vinil

E esse vinil, hein? Não é gato, mas tem sete vidas. Já foi execrado, xingado, quebrado. Na nossa casa, foi dado pro seu João que vinha pegar as coisas velhas, e de repente, eis que o negro gato ressurge das cinzas!
Lembro-me da vitrola. Ah!, a minha velha vitrola, de cor âmbar, de duas caixinhas, o aparelho mais rudimentar que alguém possa imaginar. Depois comprei um 3 em 1. Tinha o toca-discos, dois toca-fitas – e isso era uma beleza, a gente podia gravar de fita pra fita –, e o rádio, FM, é claro. O som, tanto da fita cassete, quanto do vinil, não era lá grande coisa. Tinha aquele chiado. E não é que tem gente que aplaude a volta do vinil exatamente por causa do chiado? Vai entender...
Eu comprava disco lá na Discolândia, que ficava no mercado, nem sei se existe mais. Comprei muito compacto – pros mais jovens, aquele disquinho menor, com duas músicas apenas. O long-play, geralmente com doze músicas, era mais caro.
Lembro como se fosse hoje o senhor Francisco Paixão vindo me dizer que tinha comprado um aparelho de tocar CD. E o som, comé que é, quis saber, entusiasmado, ao que ele respondeu que era limpo, limpo como a Serra da Mantiqueira em dia de sol. Depois disso eu também comprei um. Mas, pra minha sorte – já que eu o tenho aqui comigo até hoje funcionando que é uma beleza –, ele toca vinil também.
Não sei por quê,  mas escrevendo essas asneiras aí, me deu uma vontade de dar uma olhada nos meus velhos vinis. É, eu tenho guardado aqui em casa uma porção deles, que escaparam do carrinho do seu João.  
Pego a escadinha no quintal e escalo a minha estante até encontrá-los lá em cima, bem arrumados junto aos livros.
Em 1977 – poxa, vai tempo, hein? – passou na TV Tupi a novela “O Profeta”. Não é que eu tenho aqui comigo essa preciosidade, o disco da novela!? “Quem dá mais”, gravada pelo Antonio Marcos; “Jura secreta”, com a Simone. Quem interpretou magnificamente o profeta foi o Carlos Augusto Strazzer. Eu assistia àquela novela. Lembro-me muito da testa do Strazzer – eta, testa grande! Todas as vezes que ele ia ver alguma coisa, geralmente sinistra, a câmera se dirigia para a testa dele. Coisa de louco.
Encontro um cujo título é “Verão 84”. Grupos como Absyntho (Ursinho Blau Blau), Barão Vermelho (dispensa apresentações), Grafite (Mamma Maria), Rádio Táxi (Eva), Sempre Livre (Sou Free), Gang 90 (Nosso Louco Amor). Poxa! Gang 90, nem me lembrava mais...
Nas festas de Santa Teresinha, na quermesse, eu e os Castilhos (Paulo e Fábio) tomávamos conta do serviço de som. Teve um ano que só deu o “Nosso Louco Amor” e a “Menina Veneno”. Tocamos até arrebentar os pobres.
Ops... Não, não pode ser... Não, não... Um descuido... “Sol de Verão”, internacional... Novela global de 1983. Na capa eu vejo escrito: “Pertence a Mauro Castilho Gonçalves”.
Poxa... Mancada minha, hein, Maurão? O disco tá bem acabadinho, a capa colada com durex, você sabe, né, tocou muito na festa. Prometo que devolvo. Um grande abraço, meu amigo!!! E bora escutar...

sábado, 18 de maio de 2013

Padre Beto, de Bauru

Quando me lembro de Bauru, me vem à cabeça o bauru do Bigode, que meu pai comprava pra gente comer à noite. Me refestelava com o dito cujo, uma delícia que a gente não encontra mais. Talvez encontre. O que não tem mais é o carinho do meu pai, o aconchego da mesa posta, do pivete que pegava o sanduíche pra comer assistindo ao jogo do Palmeiras na televisão. Eita... Mas falemos sério. Ou tentemos.
Ele diz que pode existir amor num relacionamento de pessoas do mesmo sexo. Que se a ciência humana hoje constata que não dá mais para enquadrar o ser humano em categorias estanques, mas em seres sexuados, e que o amor pode surgir em qualquer dos níveis (homossexual, bissexual, heterossexual), a igreja precisa estudar melhor isso, senão estará cometendo um pecado: o de não saber amar o seu próximo.
Ela reagiu furiosa. Disse que o padre cometeu um gravíssimo delito de heresia e traiu o compromisso de fidelidade à igreja a qual ele jurou servir no dia de sua ordenação sacerdotal. E soltou a mão pesada: decidiu excomungá-lo.
Padre Beto não é qualquer um. Filho de católicos, diz que se aproximou da religião por causa da admiração a católicos progressistas como dom Paulo Evaristo Arns (SP), dom Mauro Morelli (RJ) e dom Pedro Casaldáliga (MT). Depois de ordenado foi para a Alemanha estudar teologia, onde também concluiu o doutorado em ética. Diz que lá encontrou liberdade para refletir e questionar. É formado em história e direito. É professor universitário.
Fico pensando ao ler essas notícias: essa igreja mais uma vez perde o bonde da história. Nem com Francisco querendo dar uma oxigenada em tanta coisa velha, esse povo não toma tento? Não pode mais falar? Eles querem o quê, um cordeirinho de cabeça baixa que não questiona nada?
Nenhuma sociedade, grupo ou instituição evolui sem os questionamentos dos descontentes, daqueles que veem a coisa podre e botam a boca no mundo, que têm a coragem de enfrentar a maioria, sofrendo na própria pele e pagando o preço, às vezes alto demais, por nadar contra a corrente. Se não fosse assim estaríamos ainda escravizando negros, vendendo as indulgências, condenando os “assassinos” de Jesus.
Até onde me lembro, Jesus Cristo sempre teve uma postura inclusiva, abraçando prostitutas, pagãos, doentes e cobradores de impostos. Nos dias de hoje, se estivesse aqui entre nós, estaria abraçando homossexuais, transexuais ou qualquer humano que não se enquadrasse nos padrões e rótulos da sociedade mesquinha-dominante.
E não venham dizer que o padre sabia de tudo isso quando foi para o seminário. O que vocês querem? Uma igreja estagnada, fechada no seu egocentrismo, pecadora, que pune os que ousam discutir qualquer invencionismo humano rotulado de divino?

Padre: como diz seu xará, o frei, “não pode a teologia negar a essencial sacramentalidade da união de duas pessoas que se amam, ainda que do mesmo sexo. Todo amor não decorre de Deus? Pecado é aceitar os mecanismos de exclusão e selecionar seres humanos por fatores biológicos, raciais, étnicos ou sexuais. Todos são filhos amados por Deus”. Continue botando a boca no mundo. Queremos ouvir.

sábado, 11 de maio de 2013

Gilberto Gil

No ano passado vi um homem falando na tevê que o novo CD do Chico Buarque era excepcional. E dizia mais: que tínhamos de ouvi-lo umas três vezes, quatro vezes, dez vezes, para começar a perceber a genialidade do artista transportada para aquelas canções. Na telinha, eu lia debaixo de seu nome as letrinhas “crítico musical”.

Logo pensei: esse negócio de crítico, sei não... Mas ele sabia do que estava falando. Comprei o CD e gostei de uma ou duas músicas. As outras, não. Decidi, porém, seguir a sua cartilha. Ouvi uma, duas, dez vezes. Deitado na cama; no carro, indo pro trabalho; enquanto tomava banho. Mas ouvi mesmo, não aquele negócio de fundo musical, a cabeça em outro lugar. E o que foi que descobri? Que todas, todas as músicas eram maravilhosas.
Desde então adotei a técnica. Quando compro um CD, evito julgamentos à primeira ouvida. Tento me acostumar com as canções. Ouço diversas vezes. Parece que você vai desnudando o artista aos poucos. Cada vez que você ouve a mesma melodia, você encontra uma coisa nova. É um manancial inesgotável de sensações. Você vai penetrando na alma do artista, vai descobrindo o que ele está pensando, o que ele está te entregando naquela canção. Quando o cara é bom, como o Chico, você ouve um montão de vezes, não enjoa, e sempre encontra algo novo. O CD “Chico” pra mim tem o mesmo valor que uma ametista para os garimpeiros de Marabá.
Dia desses comprei um CD nas Americanas, uma coletânea do Gil. Sim, sim, eu gosto de diversas músicas dele, como “Estrela”, que acho de um lirismo fantástico, “Palco”, e algumas outras, mas nunca tinha ouvido a maioria de suas canções, e com esse desejo novo de descoberta.
E descobri cada joia. “Drão”. A impressão que tenho é que “Drão” (Drão é o apelido da ex-mulher de Gil) já possuía uma existência cósmica. Ela já existia imaterialmente, viajando por aí. Gil, num momento de ruptura existencial nada fácil, reuniu seus pedaços, pequenas porções que flutuavam no universo, como bolas de sabão, e materializou-os numa canção de encher os olhos. Cada adjetivo, cada frase, cada rima, tudo tão bem colocado, tudo redondinho. E de uma profundidade colossal.
“Estrela” também me dá essa sensação. De que já existia. De que faltava apenas encontrar o cara, o escultor que iria descobri-la vagando em algum lugar desconhecido, que iria pegar a ideia (a tal inspiração), uma caneta, um papel, e materializá-la numa canção, a fim de que pudesse se fazer ouvir, que pudesse embalar o ouvido dos mais sensíveis, daqueles que se deixam tocar por uma coisa extraordinária chamada música.
“A paz” me deixa em paz todas as vezes que a ouço. A música é do João Donato, e no CD Gil explica como compôs a letra. Sensacional ele dividir esse instante tão mágico e íntimo com os seus fãs. Sim, porque compor uma melodia com nesse nível de refinamento, eu só posso definir como um momento de sofisticada alquimia. Gil é um alquimista das canções. Descobri “A novidade” só agora, pode? Mas ela não ficou velha. E tenho certeza que vou descobrir muito mais desse gênio chamado Gilberto Gil. 

sábado, 4 de maio de 2013

Dama-da-noite

Tenho em casa uma dama-da-noite. Sim, ela me pertence, presente de minha mulher. É que o seu perfume me encanta. Em Ubatuba, na frente do apartamento em que ficávamos, tinha aos montes. Quando a gente saía de noite, principalmente no verão, batia aquele cheirinho inebriante e era muito bom.
Comentava, sempre que estávamos por lá, que aquele perfume era o bicho. Depois de um tempo, minha mulher, solícita e atenciosa como sempre, me presenteou com uma, depositada num grande vaso que fica na frente da minha casa.
Ganhei o presente e a responsabilidade pelo cuidado de tão fina flor, é lógico. Toda manhã, lá estou eu com uma garrafinha borrifando água para que ela cresça saudável, graciosa e elegante, e, acima de tudo, perfumada, muito perfumada.
É uma tarefa que não me desagrada, pode apostar. Antes da agitação do começo do dia, do pão e leite que tenho de buscar na padaria, do lixo que tenho de pôr na rua, do café que tenho de preparar, das crianças que precisam ser levadas para a escola, da leitura rápida do jornal, enfim, antes de toda a correria mundana das primeiras horas, encontrar um tempinho pra jogar água numa plantinha é uma tarefa gloriosa, afinal, trata-se de um ser vivo que depende de mim e, sem qualquer interesse subliminar, é sempre bom plantar uma sementinha do bem para garantir o futuro da humanidade, especialmente quando esse futuro seja o meu mesmo, é claro.
Minha mulher até que me dá uma mão, porque aguar eu até faço com grande zelo, mas podar, adubar, borrifar um remedinho receitado pelo dr. jardineiro, arrancar as bolinhas que, segundo ela, são bichos e matam a planta, aí... bem, deixa pra lá...
Muitas vezes cheguei em casa e fui recebido com o esplendor daquele perfume, o que, obviamente, compensa as horas gastas na tarefa da borrifação. Mas, na maior parte das vezes, nada. Não sei se é o tamanho, o lugar, o sol, se é o excesso de água, ou a falta, não sei. O que sei é que a danada não vinga.
A dama é caprichosa. Quando periga espraiar um cheirinho gostoso, no dia seguinte eu encontro no seu entorno um monte de cachos espalhados pelo chão, derrubados pela brisa, imagino eu, que levou para longe as inflorescências perfumadas.
Minha mulher, dia desses, inconformada, mas muito decidida, tratou de dar um jeito na belicosa. Arrancou-lhe galhos secos, folhas amarelecidas, bicho e tudo mais. Agora vai, pensei. Mas, quando vi, tinha sobrado apenas um toco, um pobre toco que chegava até a dar dó. “Faça o favor de aguar, né? Sem água ela não cresce”, disse-me determinada. “Pode deixar, que de sede ela não morre”, respondi, sem muita convicção.
Como anda chovendo muito, divido essa nobre tarefa com Deus Nosso Senhor. Sinceramente, não sabia que era tão difícil assim fazer vingar uma simples dama.
Deveria saber, afinal, as damas são sempre caprichosas, e eu nunca tive muito jeito com elas.
 
Lembro-me de uma namorada que mais parecia uma bomba-relógio. Um dia, disse isso a ela. Mas por quê?, ela ingenuamente quis saber. Ora, ora... Qualquer verbozinho inocente, qualquer frasezinha mal colocada, qualquer comentariozinho infeliz, você sabe, né? Nunca soube, eu acho, mas, naquele dia eu soube; ah, eu vi de perto o que os japoneses chamam de explosão nuclear.

Comunicado

O autor informa que suas crônicas estão sendo publicadas com exclusividade na página Crônica do Dia ( www.cronicadodia.com.br ). Convida...