Eles contavam ao meu avô que o
Alcebíades tinha morrido de câncer. Eu no quintal, ao lado do pé de araçá,
alheio à conversa, sem imaginar naquela época o que significava a palavra
câncer, nome feio que as pessoas evitavam falar, e que eu conheci mais de perto
muito mais tarde. Apanho um araçá azedo que dói. Arrumam uma mesinha vermelha
no quintal. Colocam uma toalha branca, um prato, talheres. O sol claro. Céu
azul. No meu prato tem frango, macarrão, que não falta aos domingos. Sento na
cadeira e solitariamente almoço. Na cozinha, a discussão corre solta.
O relógio da sala faz tic-tac, tic-tac,
tic-tac. No sofá, tento dormir um pouco. Meus pais batem pro velório onde jaz o
meu avô. O outro, por parte de pai. Só escuto o tic-tac, tic-tac, tic-tac. Sem
querer ou mesmo dar conta, me concentro nas batidas, pensando no meu avô.
Tic-tac, tic-tac, tic-tac. Onde será que ele vive agora? O sono vem.
A calçada estreita da Barão à espera de
nossas pernas saltitantes. Dá-se a largada. Em cada instante, um na frente. Eu
acelero e me deparo com um pé. Sinto o mergulho. Um rodopio esquisito. A
batida. Um cheiro de pó. Ardem braços, pernas, cabeça. Levanto já me limpando,
para aceitar conformado a derrota. Bem calmo, vou dizendo que “tá tudo bem”.
Até pintar de vermelho a calçada.
Tic-tac, tic-tac, tic-tac. Estão
discutindo sobre dinheiro. Meu avô reclama de alguma coisa. Alguém se levanta e
corre pro banheiro chorar. Na cozinha também tem choro. Meu avô levanta da
mesa, vai em direção ao seu quarto, fecha a porta. Meu avô dorme sempre depois
do almoço. Um pouquinho só. A sesta. Uma meia hora. Pode a casa estar caindo,
pode surgir o compromisso que for, até mesmo um velório. “Eles não vão esperar
você acordar, nego!” – escuto minha avó dizendo. Ele não quer nem saber.
Tic-tac,
tic-tac, tic-tac. Acordo
com aquela sensação agravável. Olho o relógio. Não pode ser. Só dez minutos?
Não acredito. Parece que foi tanto. A casa silenciosa. Saíram todos, diz minha
avó sentadinha do meu lado, numa cadeira de balanço, escutando rádio, fazendo
crochê. “Só ficou seu avô, que tá dormindo”. Escuto o Silvio Santos. Minha avó
adora o programa de rádio do Silvio. Minha bisavó adorava o Silvio. Minha avó
adora o Silvio.
Tenho vontade de dormir de novo. De
ouvir o tic-tac, tic-tac, tic-tac. O Silvio falando no rádio. Tenho vontade de
voltar ao quintal, ao pé de araçá, à hora do almoço. Ontem foi mais suave. E
mais colorido. E mais lírico. Hoje é mais cruel. E mais cinza. E mais triste. Meu
avô não dorme mais depois do almoço. Minha avó não faz mais crochê. Não tem
mais almoço de domingo. Não tem mais araçá. Não tem mais família reunida. Nem
casa tem. Não sobrou nada.
P.S.: Excepcionalmente postada nesta sexta-feira