sexta-feira, 30 de maio de 2014

Algumas lembranças

O frango caipira na mesa. A conversa rola solta na cozinha. Política, esporte, gente que morre. “Você lembra do Alcebíades, pai? Marido da Margarida do seu Genaro? O Genaro, pai? Aquele que certa vez bateu o carro aí na frente?” “Ah, o Genaro!” “Então, o Alcebíades era o marido da Margarida”. “O Alcebíades eu não sei”. “Claro que sabe, pai! Ele vivia no bar!”
Eles contavam ao meu avô que o Alcebíades tinha morrido de câncer. Eu no quintal, ao lado do pé de araçá, alheio à conversa, sem imaginar naquela época o que significava a palavra câncer, nome feio que as pessoas evitavam falar, e que eu conheci mais de perto muito mais tarde. Apanho um araçá azedo que dói. Arrumam uma mesinha vermelha no quintal. Colocam uma toalha branca, um prato, talheres. O sol claro. Céu azul. No meu prato tem frango, macarrão, que não falta aos domingos. Sento na cadeira e solitariamente almoço. Na cozinha, a discussão corre solta.
O relógio da sala faz tic-tac, tic-tac, tic-tac. No sofá, tento dormir um pouco. Meus pais batem pro velório onde jaz o meu avô. O outro, por parte de pai. Só escuto o tic-tac, tic-tac, tic-tac. Sem querer ou mesmo dar conta, me concentro nas batidas, pensando no meu avô. Tic-tac, tic-tac, tic-tac. Onde será que ele vive agora? O sono vem.
A calçada estreita da Barão à espera de nossas pernas saltitantes. Dá-se a largada. Em cada instante, um na frente. Eu acelero e me deparo com um pé. Sinto o mergulho. Um rodopio esquisito. A batida. Um cheiro de pó. Ardem braços, pernas, cabeça. Levanto já me limpando, para aceitar conformado a derrota. Bem calmo, vou dizendo que “tá tudo bem”. Até pintar de vermelho a calçada.
Tic-tac, tic-tac, tic-tac. Estão discutindo sobre dinheiro. Meu avô reclama de alguma coisa. Alguém se levanta e corre pro banheiro chorar. Na cozinha também tem choro. Meu avô levanta da mesa, vai em direção ao seu quarto, fecha a porta. Meu avô dorme sempre depois do almoço. Um pouquinho só. A sesta. Uma meia hora. Pode a casa estar caindo, pode surgir o compromisso que for, até mesmo um velório. “Eles não vão esperar você acordar, nego!” – escuto minha avó dizendo. Ele não quer nem saber.
Tic-tac, tic-tac, tic-tac. Acordo com aquela sensação agravável. Olho o relógio. Não pode ser. Só dez minutos? Não acredito. Parece que foi tanto. A casa silenciosa. Saíram todos, diz minha avó sentadinha do meu lado, numa cadeira de balanço, escutando rádio, fazendo crochê. “Só ficou seu avô, que tá dormindo”. Escuto o Silvio Santos. Minha avó adora o programa de rádio do Silvio. Minha bisavó adorava o Silvio. Minha avó adora o Silvio.
Tenho vontade de dormir de novo. De ouvir o tic-tac, tic-tac, tic-tac. O Silvio falando no rádio. Tenho vontade de voltar ao quintal, ao pé de araçá, à hora do almoço. Ontem foi mais suave. E mais colorido. E mais lírico. Hoje é mais cruel. E mais cinza. E mais triste. Meu avô não dorme mais depois do almoço. Minha avó não faz mais crochê. Não tem mais almoço de domingo. Não tem mais araçá. Não tem mais família reunida. Nem casa tem. Não sobrou nada.
P.S.: Excepcionalmente postada nesta sexta-feira 

sábado, 24 de maio de 2014

CNH

Sabe aqueles papos de botequim? Pois é. Dia desses, após umas cervas geladas, derrapei já meio sonolento num pensamento de Epicuro — “Por que temer a morte? Enquanto eu sou, a morte não é; e, quando ela for, eu já não serei. Por que deveria temer o que não pode ser enquanto sou?” Ele chegou instigado por aqueles papos existenciais que cheiram a mofo, típica conversa de botequim pós-breja: “De onde viemos? Pra onde vamos? Como será o lado de lá? Quem tem medo da morte? Quem não tem? E gente que vai num estalo? E gente que sofre horrores?”
Mas não é nada disso que quero falar, meu amigo. Nem sei por que comecei essa história toda. O que quero falar mesmo é sobre a renovação da minha carteira de motorista, assunto muito, mas muito mais interessante que qualquer conversa de botequim.
Minha primeira habilitação, tirada aos dezoito, durou que foi uma beleza. Depois que fiz quarenta é que tive que entrar nessa de renovação a cada cinco anos. A primeira renovação demandou até provinha. A de agora, não. Nada que um belo de um Poupatempo não desse jeito. Fui pra lá meio desconfiado. Sacumé, né? Era a primeira vez que utilizava os serviços dessa invenção “primeira classe” da burocracia estatal. Que assusta, pois os serviços do Estado estão armados de burocracia até os dentes. E a desconfiança só aumentou vendo aquele mundaréu em filas e cadeiras. Me dirigi à mocinha bem maquiada que me indicou a fila tal; sete minutos depois, passava pela triagem, recebia uma senha e seguia em direção ao Detran.
Primeiro a documentação. Coisa rápida. Eficiente. Mais uns minutinhos de espera e a foto. Mal acomodado num cubículo, a moça me manda tirar os óculos e endireitar os ombros. “Pera aí! Como tirar os óculos?” “Precisa tirar, senhor” “Você está me dizendo que vou ter de ficar cinco anos com a foto de um sujeito que não tem nada a ver comigo? Óculos fazem parte da personalidade, sabia?” “Precisa tirar, senhor” Até agora não entendo. Tiramos ambos: eu, os óculos; ela, a foto. Exame médico. Rápido. Pressão arterial. Letrinhas miúdas. “O senhor vai até o banco, paga as taxas e retorna com os comprovantes” Sabia. Agora a coisa pega. Banco. Fila. Nada! Pra minha surpresa, a agência bancária do Poupatempo estava vazia. Pagamento rápido. O fato é que quarenta e cinco minutos depois de ter entrado, eu saía. E com o protocolo na mão, para retirar a CNH dia seguinte, olha que beleza.
O que pegou mesmo foi depois. Não achava o protocolo. Como pode? Revirei tudo. Casa. Trabalho. Carro. Carteira. Nada. Só ouvindo as piadinhas dos colegas, coisa da idade, esquecimento, normal, etcetera e tal. Fui com a cara e com a coragem, levando a CNH antiga. Quando a tiro da carteira, tava lá, carimbado no verso: “retirar dia 09, após às 10:00 horas”.
Pior que perder o protocolo é achar que perdeu o protocolo que você nunca recebeu. Como pode alguém perder uma coisa que nunca teve? Se nunca teve, não pode perder. E se mesmo assim acha que perdeu, é porque em algum momento teve ou, porque a idade avança mesmo e seus amigos estão certos...

sábado, 17 de maio de 2014

Sabe, Geia

Eu caminhava na Santa Teresinha quando ele se aproximou:
“Oi, Geia”. Respondi no automático: “Opa!”
Ele agora seguia ao meu lado. Puxei da memória. Nada. Eu não o conhecia. Aí ele clareou tudo: “Eu acompanho suas crônicas no Matéria-Prima”.
“Ah, legal!”
“O meu domingo não é o mesmo sem elas. Sabe, Geia, a que mais gostei foi aquela daquele homem na praia da Almada. Em Ubatuba. Lembra? Solitário. Sem ninguém. Eu me identifiquei com ele. Também sou sozinho. Não casei. Vivi com meus pais até eles morrerem. Hoje moro sozinho. Sou aposentado. E tem aquele negócio mesmo da gente não falar com ninguém. Tem fim de semana que passa e quando me pego em casa, vejo que não conversei com ninguém. Eu sinto falta, sabe? Você não tem ideia de como meu coração tá acelerado agora. Busquei coragem não sei de onde para vir falar com você”.
“Qual o seu nome, amigo?”
“Pedro”.
“Poxa, Pedro, fico feliz em saber que minhas crônicas lhe fazem bem. A gente escreve e no fundo pensa que alguma coisa que tá ali possa proporcionar algo, qualquer coisa, ainda que apenas prazer ou um sorriso. E deixe pra lá esse negócio de ficar nervoso. Venha falar comigo sempre que quiser”.
“Sabe, Geia, às vezes me bate um certo arrependimento. Eu tive diversas oportunidades de estabelecer um vínculo com alguém. Mas nunca tive coragem de abandonar meus pais. E eles viveram muito. Meu pai morreu primeiro. Viu como sua crônica da viúva é verdadeira?, he,he,he! Meu pai morreu com 79. Minha mãe, com 85. Então, com a morte deles eu pensei, ah, agora caso. Que nada. Eu já era uma pessoa cheia de manias, não ia conseguir mais viver com uma mulher debaixo do mesmo teto. Minto. Até pensei num compromisso sério com a Inês. Mas você acredita que a Inês enfartou? Morreu, Geia! Morreu!”
“Verdade? Poxa... Sinto muito...”
“Depois dessa não quis saber mais. Foi um sinal. Sabe, Geia, eu acredito muito em sinais. Ninguém dá bola. Eu dou. Eu faço conexões. Outro dia na fila da padaria vi uma cena. Era uma mulher tentando pegar um chaveirinho. A moça do caixa,  extremamente mal-humorada, a interrompeu de forma grosseira: ‘Esse aí não é pra pegar, não! É o daqui de dentro’.  A mulher ficou sem entender. Eu intervim: ‘É que esses são apenas amostras. A senhora escolhe e a mocinha pega um igual lá dentro.’ Educadamente, ela agradeceu. Mas desistiu do chaveirinho. Tem gente muito mau- humorada, Geia. A verdade é que não gostam do que fazem. Em compensação, num supermercado, encontrei um açougueiro humorista. A fila estava enorme...”
Conversamos muito naquele dia. Na praça, durante minha hora de caminhada, e depois, tomando um suco na padaria. Acho que fiz bem a Pedro. Acho que ganhei um novo amigo. Mas não sei não... Esse negócio de ele às vezes passar o fim de semana sem falar com ninguém tá meio mal contado... 


sábado, 10 de maio de 2014

Dengue e dengosos

Recebi a notícia de que meu amigo Jorge está com dengue. E também meu amigo Pedro. E Du também. E Marcos está com suspeita. Como também o professor de desenho da minha filha. Seu amiguinho de inglês pegou. A cada acesso ao facebook, vejo um novo amigo picado pelo xexelento. Antigamente ouvíamos relatos de dengosos pela cidade, mas a coisa parecia distante, como se a realidade existisse apenas além das muralhas de nosso castelo de fadas. Às vezes alguém da família, ou um amigo longínquo. Mas não se confirmava nada. Agora não. O mosquitinho vem fazendo estragos e já vejo uma nuvem deles se aproximando do Paraíso. Dia desses corri ao médico com meu pequeno gigante militar. Uma gripezinha danada. Ainda bem.
Como você deve saber, no último mês passei às turras com os preparativos do lançamento do meu livro. Deu trabalho. Porém, um trabalho prazeroso, como deve ser todo trabalho. Quem faz o que gosta dispensa aposentadoria. Eu, por exemplo. Se conseguisse viver de meus textos seria uma beleza. Escreveria até morrer. Mas confesso que não via a hora de chegar o tão esperado dia. Ansiedade? Nada! Não era tanto pelo evento. Estava sim incomodado com a simples possibilidade, cada vez mais real, desse insetozinho sem-vergonha vir bater à porta da minha casa. Já pensou? Eu largado na modorrência, entregue a cuidados terapêuticos, me abastecendo de soro o dia todo e sofrendo das terríveis dores corporais, que dizem ser intensas!? E mais! Noite de autógrafos. O autor não veio. Está dengoso. Eu, hein?
Aliás, adivinhe o que mais ouvi na noite de lançamento? “Já fez filhos?” “Já!” “Plantou árvore?” “Já!” “Então já posso morrer?”, eu indagava em tom jocoso. E dizia: “Há como desplantar, meu amigo? Sim! Desplantar! Pois vou já! Lá em Cunha. Tratar de dar cabo da pobrezinha”. Bobagens, caro leitor. Bobagens.
Mas estou com meu amigo Lucas: o homem perdeu a guerra. Pois é. Um bostinha de um mosquito tolo. Temos acesso a um tesouro a que todos chamam de conhecimento. Sabemos como evitar a proliferação. Sabemos o que fazer. E o que não fazer. E mesmo assim, não somos capazes de nos organizar minimamente a ponto de evitar essa doença de terceiro mundo.
Isso daria um belo filme hollywoodiano, não? Um desses Spielbergs americanos traria um quê de Independence Day ao curta. Acho que ficaria bom, embora o perigo não estivesse entregue aos feinhos alienígenas, mas a simples mosquitos de água de sarjeta.
Não se trata de chafurdar na arrogância humana, meu amável leitor. Quando Cortella fala que você é um entre 6,4 bilhões de indivíduos, pertencente a uma única espécie, entre outras três milhões de espécies classificadas, que vive num planetinha que gira em torno de uma estrelinha, que é uma entre 100 bilhões de estrelas que compõem uma galáxia, que é uma entre outras 200 bilhões de galáxias num dos universos possíveis e que vai desaparecer (*), ele simplesmente está dizendo isso: que você não vale nada.
Que a gente não vale nada, tudo bem, a cada dia que passa o homem com seus atos dá provas disso. Mas sucumbir diante de um mosquito? Ah, peraí...
 * Qual a tua obra? Mario Sergio Cortella, pg.26.

sábado, 3 de maio de 2014

Zen

Ultimamente ando meio cabreiro com a igreja dos homens. Está certo que a igreja, na sua dimensão humana, tende a refletir em boa medida, as misérias desta classe cada vez mais pobre. Mas esta justificativa por si só não me faz engolir uma porção de coisas que prefiro nem falar.
Só sei que apesar disso, outro dia não resisti e resolvi dar uma entradinha na Catedral. Esperava que com a igreja vazia, abstrações como o silêncio, a contemplação dos afrescos, as imagens dos santos, o delicioso cheiro de incenso, pudessem me levar a um gostoso passeio matinal, ainda que breve; uma viagenzinha amorosa, quem sabe bater às portas do Paraíso, hein?, tocar as mãos do Cristo, sentir o abraço das Marias, compartilhar umas frutinhas com o velho Chico debaixo de uma jabuticabeira.
Não tenho boas recordações da Catedral. Estive lá algumas vezes testemunhando a união de camaradas. Não sei se ainda é assim, mas naquele tempo casava-se muito. Marcavam pras quatro. Recebíamos o convite e tava lá anotadinho: “quatro da tarde”. Como sempre pontual, chegava com alguns minutos de antecedência. Depois de ver dúzias de noivas desfilarem seus véus enoooormes pelo tapetão, a minha noiva, quer dizer, a do meu camarada, aparecia portentosa na porta da igreja. Isso lá pelas seis, sete da noite.
Meu amigo Zé Eduardo, de Sampa, me disse outro dia que agora a moda é chegar no horário. Nada de atrasos. Muito bom. Isso se chama respeito aos convidados, coisa que muita noiva desconhece. No entanto, agora chegam no horário, mas inventam um supermercado de cafonices que é um tédio só.  Trombetas, clarins, rosas, imagens, papel picado. Noivos atores. Pose aqui, pose acolá, sorriso de comercial de pasta de dente. Não é o cameraman que está lá para registrar um fato. O casamento é concebido em função da filmagem. Aliás, o cameraman manda mais que padre. Sentido do sagrado zero.
Mas não quero falar de casamento. Quero falar do meu momento zen em uma manhã ensolarada na Catedral de São Francisco. Confesso que me decepcionei um pouco. Não encontrei o silêncio que esperava, o pontilhão que imaginava atravessar para encontrar o céu. Encontrei meu querido padre Marquinhos falando para os seus fiéis lá longe, naquele altar exuberante. Por falar em altar, sempre admirei o altar da Santa Teresinha, onde cresci. Mas altar que é altar, venhamos e convenhamos, Fred, é o da Catedral. Que beleza. Quantas pessoas cabem lá? Hein?
A Catedral estava cheia de fiéis participando da missa do Santíssimo. Marquinhos arrumou um moço bom na música, o povo todo delirava vendo o sacerdote, seguido de seu séquito, deslizar pelos corredores apertados trazendo às mãos o poderoso Salvador.
Olha, meus queridos, admito que queria o silêncio. Admito que me decepcionei um pouco ao entrar e trombar com a confusão toda. Mas, pra minha surpresa, quando dei por mim, já estava fazendo a travessia. Não consegui sentir as mãos furadas do Cristo, o abraço das Marias, ou mesmo provar das frutinhas silvestres do amigo Chico. Ainda bem. É cedo pra isso. Mas acho que provei sim um pouco do gostinho do céu. E é doce.  

Comunicado

O autor informa que suas crônicas estão sendo publicadas com exclusividade na página Crônica do Dia ( www.cronicadodia.com.br ). Convida...