sábado, 28 de dezembro de 2013

Mais um ano se passou

É... Mais um ano se passou... Eu encontro as pessoas nas ruas, paro pra conversar, e num certo momento todas elas falam a mesma coisa: “Nossa! Como este ano voou?!” E a sensação que temos é que a vida voa mesmo.
O final do ano sempre tem aquelas matérias chatas na televisão. O que fazer para a ceia de natal. Do réveillon. Opções de ceia delivery. O que fazer para curar a sua ressaca do dia seguinte. Que roupa vestir na passagem do ano. Pular as sete ondinhas. Comer lentilha. O que fazer com o décimo terceiro. Ah!, é sempre a mesma coisa... Você nunca viu? Pague suas compras à vista, não fique no cheque especial, peça descontos, gaste a sola dos sapatos... Afe! Sempre a mesma coisa. Não muda! Um saco!
E tem aquela coisa de fazer o balanço da vida, como foi o ano, o que fez de bom, de ruim, o que deixou de fazer e se arrependeu, o que fez e se arrependeu também, planejar o ano vindouro. Nunca dá certo, né?
Neste exato momento – sim, meu amigo, neste exato momento em que estou escrevendo esta crônica, que imaginava uma e que parece estar a crescer outra – me vem à cabeça minha mandala. Yes! Eu tenho uma mandala! E ela está cheia de projetos, metas e o diabo a quatro. Faz tempo que não dou uma bisbilhotada nela.
Pois vejamos. No plano espiritual: vejo uma foto do sorridente Dalai Lama. Um barquinho singrando o mar azul. Está escrito: Compaixão pelo próximo. Budismo e Espiritismo (conhecer, pesquisar). Paz interior (meditação, contemplação). Simplificar a vida. Reler “O Irmão de Assis”. No plano físico, vejo fotos de Philip Roth e J.M. Coetzee. Está escrito: Publicar. Caminhar três vezes por semana. Yoga duas vezes por semana. Não comer carne duas vezes por semana. Beber dois litros de água por dia. Diminuir ingestão de açúcar. No plano afetivo e mental: vejo fotos de Fortaleza, vejo a foto de alguém tocando violão num crepúsculo. E está escrito: Violão. Tocar sempre que puder. Passear sempre. E algumas palavrinhas soltas: presença, diálogo, profundidade, respeito, atenção, feedback, carinho. Está tudo lá.
Os NÃOS. Não reli “O Irmão de Assis”. Não publiquei. Não pesquisei nem conheci o Budismo e o Espiritismo. Não meditei nem contemplei nada. Não faço mais yoga (abandonei depois de uns três anos). Não bebi dois litros de água por dia. Não passeei muito, quanto mais sempre. Os SINS. Caminhei três vezes ou mais por semana. Inclusive, agora corro. Não comi carne duas vezes por semana, acho que deixei de comer carne até mais dias (almoço no Vegetariano). Diminuí consideravelmente a ingestão de açúcar. Toquei violão. Agora, por exemplo, estou curtindo um som chamado Jack Johnson. Como vivi todo esse tempo sem conhecê-lo? Uma luz. Estou tentando arranhar Upside Down. Os MAIS OU MENOS: não publiquei, mas o livro está em gestação. Na editora. Final de janeiro sai. Fui mais ou menos presença, diálogo, profundidade, respeito, atenção, feedback, carinho. A gente é sempre mais ou menos nisso...
Espremendo tudo, acho que 2013 foi o ano que me mostrou dois caminhos: o do autor e o do personagem. Escolhi o primeiro. E não tem mais volta.
P.S.: agradeço com muita sinceridade a você que me lê e que me leu durante este ano. Obrigado! Meu e-mail (sergiogeia@uol.com.br) está à sua disposição, sempre, para comentários, críticas ou simplesmente para trocarmos figurinhas. Ótimo ano novo pra nós todos! Com muitos projetos, metas e o diabo a quatro! E REALIZAÇÕES, é claro!

sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Cadáver

Na melancolia do domingo à noite, depois de mandar uma pizza de calabresa pra dentro, debaixo de uma coberta quentinha já pensando nos problemas da segunda, eu senti, senti a frase aos pedaços invadindo o buraco do meu ouvido, frase que iria me acompanhar insistente durante toda a madrugada adentro: “Eu vi que era um cadáver ali”. Era a voz do professor Roberto Juliano sendo entrevistado pelo Abujamra, dizendo o que pensou ao se deparar com um pedaço de bife no prato. Depois de anos se lambuzando de carnes alheias, o professor, influenciado por sua filha, tornou-se um vegetariano.
Eu admito que nunca pensei nesse negócio direito. Por esse ângulo, então? Cadáver? Imagina aí você, sentadão numa churrascaria, mandando ver costela, picanha, alcatra, cupim, linguiça, coração, coxa, sobrecoxa, um boi inteiro, vai. Um boi só, não! Boi, porco, galinha, todos dilacerados pra você comer suas melhores partes, as mais macias, as mais suculentas e saborosas. Que desmancha-prazer esse professor, não? Cadáveres? Acordo de repente e começo prestar atenção na tevê. O professor teve diversas recaídas. Pequenas recaídas. Grandes recaídas. Mas o que me chama a atenção é o apelo que ele faz: “Esse negócio que a gente chama de carne é antes de tudo sofrimento. Sofrimento de animais como nós. O que está sendo feito neste planeta não deve continuar. A matança tem que parar”.
Penso no que li a respeito. Tá lá na memória, mas perdi a senha, he, he, he! Isso é Chico, tá? Há quem compare a matança desenfreada de animais ao holocausto. Elizabeth Costello usou essa imagem num de seus seminários: “O crime do Terceiro Reich foi tratar as pessoas como animais”. Issac Bashevis Singer fez um de seus personagens comparar o comportamento humano em relação aos animais com o comportamento dos nazistas em relação aos judeus. “Ele não diz que os crimes são igualmente maus, mas que ambos são baseados no mesmo princípio, de que poder é direito, e que os poderosos podem fazer o que quiserem com aqueles que estão em seu poder” (citado por Peter Singer, pg.103, A vida dos animais, J.M.Coetzee). O próprio Coetzee usou dessa técnica com a Costello.
Lembro-me daquele garotinho que se recusava a comer polvo. Ele perguntava onde estava a cabeça do bicho; a mãe, em vão, tentava explicar que o açougueiro tinha cortado, e que ali estavam as perninhas pra ele comer. “Ele morreu?”. “Morreu”, dizia a mãe. “Por quê?”. “Pra gente comer”. No seu purismo, livre dos condicionamentos humanos, ele retrucou dizendo que “não gostava que eles morressem”; que os animais tinham que ficar em pé.
Fico a imaginar o que alguém (claro, uma imagem hipotética, a imaginação pode tudo), um purista, alguém de um outro mundo, como o garotinho do vídeo, não maculado, não estragado pela civilização, pela diversidade retórica justificando tudo, o que esse alienígena, ainda livre das mais refinadas explicações filosóficas iria achar de tudo isso.
Longe de ser Deus, o professor quer mudar as pessoas. Não quer mais saber dessa matança, de reunião em torno de churrasqueiras e churrascarias. Ele pode até não ser Deus, mas já pode se orgulhar de produzir criaturinhas. Não tão habilidosas como o homem, mas não menos densas. Essa pulga aqui atrás da minha orelha? O que é senão obra e graça desse professor?
P.S.: excepcionalmente postado nesta sexta-feira. Bom Natal, meus queridos! Valeu!!!
 

sábado, 14 de dezembro de 2013

Adeus, companheiro

Depois de dezoito anos resolvi trocar o meu travesseiro. Isso é muito sério, amigo. Seríssimo. Se há alguém que me entende nas profundezas de minhas agruras; se há alguém que me ajuda a escarafunchar as raízes de minhas idiossincrasias; se há alguém que, silenciosamente, acolhe com boa vontade minhas lágrimas, minhas babas e meus fios de cabelo; se há alguém que é pau pra toda obra, esse alguém é o meu travesseiro, fundamento de uma existência sólida e afortunada, de uma manhã bem disposta e feliz. Você pode não ser feliz por muitas razões. Mas se você estiver insatisfeito com o seu travesseiro, apequenado e infeliz será para todo o sempre, a menos que o substitua. Imediatamente.
 Mas, não era o caso. Ao contrário. Tenho de admitir que se dependesse apenas de minha singela opinião, eu ficaria com ele por mais dezoito anos, ou até o fim da vida, quem sabe? Nos damos bem, mesmo juntos há tanto tempo. Eu já o conheço o suficiente para entender que a química que deve haver entre nós é tão importante quanto a química do amor, da paixão, do sexo. E a química no caso é perfeita. Por que trocar então, o nobre leitor deve estar se perguntando. Ora, meu amigo. Na vida, em todas as suas dimensões, precisamos aprender a ter flexibilidade mental, e quem divide leito e vida precisa praticar o exercício da audição e da reflexão de vez em quando, senão, ficam os travesseiros e vão-se os amores.
Na loja, a tentativa consistia em achar um substituto à altura. Percebi que a tarefa não seria fácil. Ainda que o travesseiro fosse confortável, aconchegante, macio, ele era virgem, e isso era um grande problema. Como todo travesseiro virgem, a impressão que dava era a mesma que você tem quando come uma fruta verde. Faltava vida naqueles mauricinhos, um calorzinho, vai. “A gente entende”, dizia-me a vendedora, com aquele jeito amável de ser. “Não se trata de uma simples troca de um objeto por outro”. Pensei: “objeto? Travesseiro? O meu? Quando? Onde?” 
Meu travesseiro tinha história, e por mais velho que fosse, ele guardava em sua essência dezoito anos de suores, babas, cabelos e o mais fino e doloroso repertório de pensamentos, que me fizeram marchar por rotas desconhecidas, que me fizeram tomar decisões, que me fizeram ser o que sou, embora às vezes tenha a impressão que não sou o que pareço ser. Isso dava a ele um valor maior, muito maior que qualquer travesseiro de penas de ganso. Lembro-me das viagens, a trabalho ou a passeio. Graças a ele, eu estava lá, hirto, firme, entusiasmado, no workshop ou nas areias da praia. Me sustentou macio, aconchegante, nas vitórias esmeraldinas, como também me aguentou sorumbático nas passagens de época, em que o Palestra quis dar uma flanada por outros mares, respirar novos ares, arejar a mente. Recebeu lágrimas quando meu velho partiu, equilibrou minha cabeça quando algumas máscaras caíram.
Cheguei em casa e pus os dois lado a lado. Minha mulher parecia assustada com minha reação. Deve ter pensado: endoidou de vez, mas não disse nada. Um, moderno, fresco, limpo, com formas arrojadas, mas estranho ainda. Um mauricinho, isso sim. O outro, velhinho, amarelo, caído. Lembrei-me de Dorian Gray. O peso dos anos tinha deixado meu amigo deformado. Isso era nítido na comparação com o outro. Adeus, companheiro.
“Meu bem, espere duas semanas. Depois você dá fim, tá!?”

sábado, 7 de dezembro de 2013

Caixões e caixotes

Perto do quilo onde eu almoço tem uma funerária que expõe aos mais chegados caixões com as cores e o escudo de times de futebol. Aqueles que sempre vejo estão esperando candidatos palmeirenses, são-paulinos e corintianos.
Ou a rotatividade é muito grande, ou ultimamente estão morrendo mais santistas, lusitanos e flamenguistas. O fato é que estão sempre lá. Os três. E, já dando um cartão vermelho para a primeira opção, noto, muito disfarçadamente, para não chamar a atenção — sim, porque de repente, o proprietário, louco por um negocinho, e sabedor de minhas preferências esmeraldinas, pode pensar que exista algum interesse de minha parte, e já queira implementar uma venda futura, o que na verdade é absolutamente falso — o surgimento, dia a dia, de uma pequena camada de pó, o que denota, decididamente, falta de zelo da faxineira e longevidade para os caixões torcedores.
O que acontece, na verdade, é que a loucura humana não tem limites. Adquirir um caixão temático não é novidade nenhuma. Em Gana, por exemplo, isso é muito comum, e, de acordo com os costumes e tradições locais, é sempre notícia — pra nós, um tanto quanto bizarra — o músico que foi enterrado dentro de um caixão-piano, ou o pescador — essa é demais — que depois de morto, foi engolido por um peixe enorme (o caixão-peixe), ou o caixão-projetor de filme. Mas a demência a que me refiro não é a dos africanos. Não! Esses peixinhos e projetores? Não! Isso é perfumaria.
Ultimamente venho declinando os convites alvissareiros para uma flanada sem compromisso por entre túmulos e crisântemos nos cemitérios locais, de modo a depositar uma florzinha que seja na casa derradeira de nossos entes queridos, que já se foram, mas que vivem em nossos pensamentos e corações. Porém, pelo que me recordo, era muito comum encontrar verdadeiras mansões, obras faraônicas, jazidas inteiras de mármores e granitos, que servem pra quê, eu lhes pergunto? Pra quê? Hein? Alguém se atreve? Que servem de moradia para o nada, ou, tá, sejamos mais delicados, que servem de moradia para a casca, que já era. Ou alguém acha que nós somos a casca, e que o que tá lá é um pedaço da essência humana?
Mas esses dias sucumbi a um desejo mórbido e insistente, e parei pra dar uma espiada nuns caixõezinhos. Sem interesses subliminares, é claro. Mais instigado pelos torcedores de madeira, que continuam lá, em pé, hirtos como a guarda do Castelo de Windsor. Conversando, descobri que tem caixão de tudo quanto é tipo: de madeira maciça de carvalho, de mogno, de vime, tem caixão estilo americano, europeu, aveludado por dentro, com ventilador, cama ajustável e descanso de punho, he, he, he! “É pro morto ficar mais confortável?”, não resisti.
Gastar dinheiro construindo mansões em cemitérios, ou comprando caixões luxuosos, é o cúmulo da loucura. Quando eu morrer, podem jogar a minha casca num caixote, o mais porcaria que tiver. Neca de petibiriba de caixão de luxo. O melhor seria o forno mesmo. Seria o ideal. A forma mais respeitosa. Muito mais digna. Depois, que mandem as cinzas para o mar, para a praia da Fazenda.
Mas o forno infelizmente não está ao alcance da ralé. E ainda não existe crematório público, ideia, a meu ver, que deveria ser abraçada com afinco pelas autoridades. Pois então, que me mandem ao caixote mesmo. Não tem problema. E que venham as formigas. Tô nem aí.

 

sábado, 23 de novembro de 2013

Multifocando

O César falou que via a estrada se mexendo. Pro Gustavo, o mais irritante era colocar os pés no chão. Cadê o chão? Sem “chãonce”. “O pé vai, vai, vai” ele disse, “e nada”. Na visão do Gustavo, o chão chegava antes da hora. O Julio conseguiu ver a máquina copiadora respirando. Os movimentos de inspiração e expiração. Nítidos. A Berenice disse que sentia náuseas enquanto caminhava.
Eram essas as minhas referências ao chegar à ótica. A atendente veio e, depois de me tranquilizar, despejando um monte de informações técnicas, aconselhou-me a comprar a TAL lente. A boa. “Você vai se acostumar rapidinho. Com esta lente aqui.” A TAL.
Sempre usei óculos com lentes simples, ou monofocais. Era a primeira vez que me deparava com aquela situação: comprar uma armação que sustentasse lentes multifocais. O que me gerou um grande problema: as minhas preferidas, as armações pequenas, não eram adequadas para a multifocalização da vida. Em tais lentes, distribuem-se três campos de visão: o longe, o intermediário e o perto. A armação então tinha de ser um pouco maior. Depois, foi escolher a marca da lente: optar por uma marca desconhecida, mas também boa nas palavras da atendente – um boa meio com cara de mais ou menos — e mais barata, ou optar por uma mais cara, ótima – um ótima com acordes de violinos — e com adaptação e conforto em tempo recorde vindo como plus no pacote?
  Gostaria honestamente de cozinhar esse tal de multifocal. Mas já estava ficando ridículo, eu confesso. Minhas lentes eram para longe. E vivi muito bem com elas, mesmo pra perto. Só que de uma hora pra outra, deu pra embaçar as letrinhas do computador, dos livros, da bula de remédio, dos ingredientes dos produtos, e, para lê-las, eu tinha que tirar os óculos. Nada mais bisonha a cena: põe óculos, tira óculos, põe óculos, tira. Ave! Isso ofusca até a sua própria identidade. Imagina: uma hora de óculos, outra, sem. Porra, o cara não se decide? Quem é esse Sergio, afinal? Um homem de mil máscaras? Com certeza, querido. Eu, você, e milhões de terráqueos espalhados pelo planeta, mas isso é muito filosófico para uma simples crônica que somente quer tratar de lentes multifocais.
A verdade é que cá estou, neste dia que está apenas começando, um solzinho já entrando pela janela, o pessoal chegando pro trabalho, e eu com esse negocinho na mão, maior do que eu gostaria, com lentes mais grossas do que eu imaginava, pensando se ponho ou se não ponho. Confesso que estou me sentindo estranho. Não sei explicar. Parece que estou deixando pra trás uma época, e começando outra. Uma mudança de época. É isso.
Mais que um mundo em três dimensões, parece que a vida ganha cores novas. Tudo mais limpo, mais nítido, mais claro. Não porque o branco-neve está tomando os pelos dos meus braços. Esses pelinhos aqui? Nada! Já fez isso no cabelo, na barba, no peito, nos pentelhos, eu nem ligo mais. A sensação é muito diferente. Parece nascer uma espécie de autoria ainda um tanto quanto rudimentar nas dimensões da vida. Em que perto e intermediário são superados pelo distante. Ele traz um pacote de mercadorias que em tempos de consumismo escravo, demandam vista boa, ainda que, à base de lentes corretivas.
Sem filosofismos, vai: deixa ver se essa máquina copiadora respira mesmo.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

A menina e o avô

Taubaté. Praça Santa Teresinha. Domingo. Oito e dez da manhã. Primeiro dia do horário de verão. Ela desce do carro animada. Estava no banco de trás. É graciosa, branquinha, bonita, cabelos lisos, castanhos, bem-tratados. Uns seis anos? Ele, sem a mesma animação, desce com dificuldade, a idade pesa. Os poucos cabelos que lhe restam são brancos, finos, como branco também é o seu bigode estilo Felipão. Fecha a porta. Engancha seu braço no braço da menina, como se fossem um casal, um casal amoroso, de amor maduro, sereno.

“Vovô, vamos apostar corrida?”
“He, he, he! Corrida? O vovô tá velho pra correr, filhinha! Vamos fazer o seguinte: o vovô senta naquele banco, e você, se quiser, corre, eu fico olhando.”
Ela, solidária, prefere a companhia do vovô. Juntos, sentam num banquinho assombreado.
“Vovô, conta uma história?”
“Uma história? Ah, história o vovô consegue contar! Deixa ver...”
Ele fica pensativo por alguns instantes, parece repassar mentalmente a história toda antes de começar. Organiza começo, meio e fim, talvez. E algum sentido; afinal, a netinha é esperta. Faz um carinho nela. Começa:
“Era uma vez uma menina chamada Ana. Ana gostava muito dos seus livros. Quando deitava para ler, experimentava uma sensação diferente, que ela não sabia dizer o que era. Ela só sabia que aquela sensação era muito gostosa e que ela queria que não acabasse nunca. Um belo dia, Ana estava lendo um de seus livros preferidos, que contava a história de um bruxinho chamado Harry”.
“É o Harry Potter, vovô?”
“Potter? Acho que sim! Se não me falha a memória, era Potter o sobrenome dele sim. Harry Potter! Mas então, Ana estava lendo no seu quarto, como fazia todos os dias, quando ouviu um barulho vindo de fora de sua casa. De repente, pela janela do quarto de sua mãe ela avistou um bruxinho de óculos, que veio lhe trazer um presente. Ele disse: ‘Olá, Ana! Trouxe pra você este livro de presente. Ele é simples, pequeno, são poucas páginas, mas ele vai te oferecer um tesouro, que muita gente procura, mas poucos encontram. Sempre que você se sentir tristinha, infeliz por algum motivo, abra este livro.’ E foi embora. A primeira vez que Ana se sentiu tristinha por não ter conseguido tirar uma nota boa na escola, ela abriu o livro. E o que foi que ela viu? Um desenho. Era uma praça bonita, um dia de sol, passarinhos na copa das árvores, ela, seu pai, sua mãe e o irmãozinho brincando de corrida. E Ana se sentiu feliz”.
Acho que foi mais ou menos assim. Admito que fiquei bisbilhotando conversa alheia. Meu alongamento demorou mais do que o costume, mas aquela cena me envolveu de forma tão profunda, que eu tinha de esperar a história terminar. A menina ficou encantada. Se engancharam novamente e saíram conversando, como um casal amoroso, de amor maduro, sereno. Um momento de felicidade, pensei. Simples, como a representação do desenho da historinha do vovô. Terminei minha corrida, meu alongamento e fui embora mais leve, deixando que o vento desmanchasse o meu cabelo, o sol esquentasse o meu rosto, a música do rádio tomasse o meu espírito.

P.S.: excepcionalmente postado nesta sexta-feira

sábado, 9 de novembro de 2013

Do nada

“Não deixe o leite derramar...” Eu já ouvi muitas vezes esta frase. Mas agora ela simplesmente brotou. Brotou, assim do nada. Quando eu tava pensando no que esperar desse timinho que o Palmeiras tem, ela veio. Tomou conta.
Ferver um litro de leite é um teste de paciência. Não adianta olhar de minuto em minuto pra ver se já formou nata, se tá subindo, se tá na hora de desligar. Nessas horas, ele parece que quer brincar com você, testar o seu limite, porque passa um tempão e você olha pro fundo da leiteira, e ele tá lá, lisinho, lisinho, que nem bumbum de neném. Agora, deixe-o lá, deixe. Vá fazer outras coisas pra ganhar o dia. Passe manteiga no pão, esprema a laranja, coe o café, vá ao banheiro. Faça isso tudo, faça. Não mais que dois minutinhos e pronto.
Continuei pensando: se ambas as situações fossem colocadas à luz da ciência, se um técnico de um desses institutos que avaliam as qualidades de nossas máquinas lhe fizesse uma visitinha, a fim de testar a qualidade do seu fogo, e nesse teste usasse dentre outras, de uma leiteira cheia de leite, não tenho dúvida nenhuma em afirmar que suas medições comprovariam que o tempo gasto na fervura, considerando as duas situações, seria exatamente igual. Bom, então o problema não é do leite?
Talvez fosse interessante chamar um outro técnico a fim de examinar a máquina humana, para tentar descobrir o que se passa com ela. Não sei se seria uma boa ideia. Se ele fosse um profissional sério, talvez abandonasse a profissão ao mergulhar no mar de sombras que é esse tal de humano. Porém, como estamos trabalhando no mundo das hipóteses, dispenso, por ora, e com todo o respeito que ele deva merecer, o senhor técnico, e mesmo sem diploma, faço eu mesmo o diagnóstico.
A máquina sofre de uma síndrome muito comum que, embora não tenha galgado ainda o foco de preocupação da Organização Mundial da Saúde, dá mais que chuchu na cerca: a “síndrome do polvo”. Já ouviu falar? Não? O Homo sapiens não se contenta em fazer uma coisa de cada vez. Como tem muitos braços, quer fazer tudo o que pode, no limite de suas potencialidades, e ao mesmo tempo. E se acostumou com isso. Você acha que uma máquina dessas, acostumada a viver lá na frente, ou lá atrás, mas nunca no lugar em que realmente está, produto mal-acabado de uma sociedade desumana e doente, vai se render a uma simples leiteira, e perder dois minutinhos de seu precioso tempo, não fazendo nada?
Como não sou desse jeito, graças a Deus, agradeci mais uma vez ao Senhor por me dar de presente neste momento, uma leiteira pra pensar. Assim, do nada. Pelo menos tirei da cabeça esse timinho que ultimamente só me dá tristeza.
P.S.: esta crônica foi escrita após a derrota do Palmeiras para o Sport no primeiro turno do Campeonato Brasileiro da Série B. Quase foi apagada, considerando que depois daquele jogo o Palmeiras se recuperou e triturou os seus adversários. Foi um passeio, vai. Flanamos. E voltamos para o nosso lugar, de onde nunca deveríamos ter saído. Dá-lhe, Palestra!!!

sábado, 2 de novembro de 2013

Dilema

Fui diminuindo a velocidade pra ver se o sinal abria. Olhei pra mocinha de olhos amendoados, magrinha, loura, a pele branca castigada pelo sol, o suor lavando o rosto. Dignamente, fazendo o seu trabalho.
É por respeito a esses trabalhadores que ficam parados nos faróis, faça chuva, faça sol, que recebo os fôlderes com educação. No entanto, depois de alguns segundos, sem mesmo ler ou ver de que se tratam, deposito-os na sacolinha que fica pendurada no câmbio. Por fim, ao chegar em casa, ou no escritório, dou-lhes o devido destino: lixo.
Naquela manhã, porém, agi diferente. Como o sinal não abriu, abri o vidro do carro. Esperei por ela. Encarei-a com olhos de compaixão. Mas permaneci hirto, e fui firme: “Obrigado, meu bem. Não quero.” Ela não esboçou qualquer reação, talvez tenha levado muitos foras nessa vida de profissional dos fôlderes, talvez não tenha nem sentido. Simplesmente continuou sua labuta, e foi se achegar ao motorista de trás.
Mas eu senti, e aqueles olhos amendoados ocuparam meu pensamento por todo o final de semana. Havia nascido um dilema, e eu precisava resolver.
Honestamente, cansei de me ver entulhado de lixo todos os dias. Há cruzamentos em que não existe apenas uma lourinha de olhos amendoados, mas três ou quatro profissionais dos fôlderes, que me entregam dois, três, às vezes quatro papéis cada um. Como não tenho o menor interesse neles, tudo fica entulhado na bolsinha; depois, seguem para a lixeira. Nessa relação, eles fingem que fazem propaganda, e eu finjo que recebo. Outro dia a ficha caiu: “meu, para, vai! Para de enganação! Para de agir como um boneco condicionado”.
E isso é muito verdadeiro. Não tem sentido algum em receber um folheto para jogar no lixo. Tá certo que os costumes civilizatórios contemporâneos têm muito disso, de agir sem pensar, puro condicionamento, e eu estava sendo mais um boizinho na boiada. “Pô! Acorda, meu!”.
E foi assim que acordei. Ao ver a mocinha com um pacote de fôlderes na mão, na insegurança de meu primeiro não a essas criaturinhas dignas de Deus, eu tentei terceirizar a empreitada ao semáforo que me deixou na mão. Estufei o peito, olhei para a lourinha, e disse muito sem jeito: “Obrigado, meu bem. Não quero”.
Ah!, mas doeu. A impressão que me dava é que eu era um patrão despedindo um funcionário, mas sabedor de que aquele emprego, por mais simples que seja, era o máximo que ela tinha conseguido. E precisa dele. Precisa talvez pra sustentar sua filhinha, pra ajudar seus pais em casa, ou simplesmente para ter o que comer, um lugar pra morar, ou mesmo pra gastar na farra. O pensamento me desestabilizava e se multiplicava: “Sinto muito. A empresa está desativando o seu setor. Pode passar no departamento pessoal e acertar suas contas”.
Não. Isso não tá certo. A sociedade desumana precisa se humanizar, precisa oferecer meios de acesso ao conhecimento, precisa qualificar o conhecimento, precisa oferecer àquela trabalhadora simples e sem recursos, oportunidades para que ela possa estudar, fazer um curso, progredir. E precisa de lucidez para encontrar outras formas de fazer propaganda, mais limpa, menos custosa, parando de emporcalhar o ambiente com papel. Enquanto isso, ela vai continuar lá, a lourinha de olhos amendoados. Dignamente suando a camisa, fazendo o que pode.

sábado, 26 de outubro de 2013

A borboleta (II)

Como disse na semana passada — se você não leu, meu querido, ainda há tempo; volte aí no blog ou consiga um número anterior do intrépido Matéria-Prima e veja lá a primeira parte da história, veja —, o mistério das borboletas mortas intrigou o nosso amigo. Duas borboletas iguaizinhas. Azuis. Mortas. Gêmeas? Clones? Uma empacotou lá, no trajeto da sua caminhada, e a outra sentiu o baque e empacotou no seu quintal? Ele lembra que certa vez viu a notícia da morte simultânea de dois frades gêmeos ocorrida na Flórida. Morreram de enfarte no mesmo dia, com 92 anos, num intervalo inferior a 12 horas.
Deixa a sua caneca já quase sem café no chão, tira os seus óculos porque de perto está vendo melhor sem, e se põe de cócoras para examinar com mais acuidade o delicado inseto. Com um pequeno graveto, começa a cutucar a borboletinha, que parece dura como um pedaço de osso.
José Saramago disse um dia que a águia é um animal magnífico. Pois ele, rendendo homenagens ao saudoso escritor, diz que a borboleta é um inseto magnífico. Vê que as seis patas continuam lá, como também continua lá o par de antenas sensoriais. Nenhum arranhão, nenhum indício de que tenha sido assassinada. Sim, porque num primeiro momento lhe veio à mente a remota possibilidade de seu cão ter ressuscitado da hibernação, e ter feito com ela o que não faz há tempos com as baratas, mas o exame superficial estava lhe dizendo exatamente o contrário.
Será? Põe a mão no queixo e tenta puxar da memória a imagem da suposta irmã gêmea, para se convencer de que se trata de pura divagação de quem não tem o que fazer, mas a primeira coisa que pensa é o que mais lhe chamou a atenção na borboleta morta: a combinação de cores, o azul cobalto, o preto nas extremidades.
Volta para sua cadeira, para sua caneca, insatisfeito e incomodado. Toma mais uma golada, mas o café, outrora quentinho e saboroso, agora dorme frio. Se seu avô ainda estivesse aqui, lhe mandaria parar de ficar pensando asneira e ir logo fazer um joguinho: borboleta na cabeça!
Se realmente as borboletas eram gêmeas, e mediante algum tipo de comunicação sensorial, uma sentiu a morte da outra, ele não sabe. Só sabe que aquele acontecimento pífio do começo do dia lhe tirou do prumo. Não com a morte em si, pois ele tem consciência de que todos nós morreremos um dia, mormente as borboletas, que duram no máximo dez meses. Mas com a morte solidária. A possibilidade de existir um elo misterioso, a comunicação sensorial entre insetos, que dirá entre humanos, é realmente sensacional. Que morte digna!
Mas o mais apavorante aconteceu depois, quando ele já estava se preparando para entrar em casa: eis que surge no quintal uma terceira borboleta, idêntica às outras, azul, preta. (Trigêmeas? Aí já é demais!!!) Ela pousa suavemente próximo à casa de Bela. Ele ali, perplexo, vendo a cena, como se fosse uma final de Copa do Mundo, a caneca já tremendo em suas mãos. Passam-se alguns minutos e, para o seu espanto, tão placidamente quanto pousou no chão, ela tomba cinematograficamente para um dos lados.
Morreu.

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

A borboleta

Encontra a empregada terminando um bolo de chocolate na cozinha. Do radinho de pilha vermelho e empoeirado, que funciona há décadas em cima da geladeira, escuta o locutor informar que o seu Benedito está querendo vender uma geladeira seminova, cor branca, Brastemp, pela bagatela de R$ 300,00. Enche uma caneca de café, que logo percebe trincada — bem a caneca azul comprada em Monte Sião, xodó de sua mulher —, segue até o quintal, onde arrasta uma cadeira até a parte assombreada, bem debaixo da jabuticabeira.
Aí está uma das vantagens de se morar em casa, e não num apartamento, ele pensa. O quintal. O dele é generoso, com muito espaço, metade terra, metade cimento. Ao fundo, onde o limbo dá lugar ao ocre macio da terra, tem uma jabuticabeira, uma macieira, uma pequena horta com couve, arruda, hortelã, cebolinha e alface; num dos cantos, a dama-da-noite, que perfuma a casa toda lá pelas sete e meia; no outro, o lírio pomposo da patroa.
Os passarinhos adoram o seu quintal. De manhã é uma festa. Cantam esfuziantes sobre a macieira, namoram, passeiam e chegam quase a entrar na cozinha à cata de migalhas de pão; roubam até a comida do seu cão. Quantas vezes não acordou ao som da sinfonia e fez amor com sua mulher...
Quem também aprecia o seu quintal é Bela. Um poodle branquinho que quando mais novo patrulhava o seu território com faro policialesco, proibindo a visita de gatos e passarinhos, mas que hoje se entrega à preguiça normal da idade, ritos finais de uma existência sólida e só. O que falta é um passarinho fugir da chuva e adentrar a sua casa, se instalar debaixo de seu cobertor. É só o que falta, ele pensa.
Fica a saborear o café ao som dos passarinhos. É um dia espetacular. O céu veste-se de azul — não tem uma nuvem sequer —, sol resplandecente, temperatura baixa, 14 graus no máximo. Uma beleza de dia vai fazendo, a Bela já andando preguiçosamente pelo quintal para tomar o seu solzinho.
No meio desse momento introspectivo contemplativo profundo, lhe chama a atenção uma borboleta azul morta no chão. É uma imagem que nem notaria se, na sua caminhada pela manhã, quando já estava perto do fim, não tivesse desviado de uma, deitada sobre uma folha de figueira, também morta, também azul.
E a que vê no quintal é idêntica àquela que viu há pouco. Será possível? Seria uma ilusão de ótica? Ou seriam borboletas gêmeas? Engasga com o riso fácil que brota do pensamento idiota. Isso não existe, diz a si mesmo em tom professoral. Se bem que, questiona-se segundos depois, num mundo de tantos mistérios e possibilidades, em que até o “chupa-cabras” foi parar em Nova York, conforme notícia que viu outro dia nos jornais, não é de se espantar que um cientista maluco qualquer, investido do poder soberano de Deus, tenha dado cabo da criação de um clone de borboleta. E se são clones, diz a si mesmo, são gêmeas. Uma empacotou lá, a outra sentiu o baque e empacotou aqui.
Perdoe-me a interrupção, meu amigo, pois imagino que esteja curioso pra ver onde tudo isso vai dar. Mas o espaço aqui é pequeno e me impede de lhe contar a história toda de uma só vez. Por isso, peço a você um pouquinho da paciência dos monges. Semana que vem, sem falta, coloco um ponto final nesse mistério.
 

sábado, 12 de outubro de 2013

Cracóvia, Varsóvia, Amsterdam..

Gosto de nomes de cidades. Alguns. Da sonoridade. Não sei até que ponto isso é relevante ou serve para alguma coisa. Deve ser tão importante quanto uma ferpa fina encravada na sola dura do meu pé. Mas você pode brincar com os sons modificando os significados, por exemplo; pode ler poesia explorando ritmos e sonoridade; pode até procurar cacófatos em títulos jornalísticos, olha que coisa interessante.
Baseado apenas no critério da sonoridade, o repertório de nomes de tudo quanto é tipo que chama a atenção apenas pelo timbre é grande. Há pessoas que gostam, por exemplo, de libélula, saudade, alameda, apodítica, sacrifício, guatemalteco, pirilampo. Tem gente que detesta zebu, espectro.
Mas o meu negócio é cidade. Nome de cidade. Não sei se a sonoridade do nome influencia em alguma coisa; de repente, alguma dimensão ainda não explorada pela física quântica; no índice de desenvolvimento humano (IDH), vai, ou na capacidade das cidades em proporcionar uma vida mais feliz aos seus moradores, com tempo para umas brejas, churrasco, mulher, futebol e cineminha.
Bacana é você associar o som da palavra a alguma coisa que lhe vem à mente. Veja bem, estou falando de uma imagem, e aqui não importa o significado do vocábulo. Ao contrário, quanto mais esdrúxula a imagem, melhor. Mais divertido. Mas não pode inventar. Tem que ser a imagem que vem, por mais chinfrim que seja.
Por exemplo: gosto do nome da cidade polonesa que irá receber a próxima Jornada Mundial da Juventude. Cracóvia. Nome sólido. A imagem que me vem é a de um estilete despedaçando um travesseiro de penas de ganso. Não sei por quê! E isso não importa, ô! O que importa é a imagem... Talvez ela venha viajando das profundezas de meu inconsciente pra me dizer alguma coisa.
Assim como Cracóvia, gosto de Varsóvia. Vejo algo maciço nele, de aço, com sustância. Varsóvia me lembra a noite, uma noite molhada, fria, com ruas mais parecendo espelhos de água, lâminas que se formam e passam a refletir o alaranjado das luzes; pessoas andando agasalhadas, ushanka na cabeça.
Ubatuba também me soa bem. Vejo a figura abolachada do João Bobo. Devem ser memórias infantis. Paraty. Almyr Klink. Um veleiro. Essa está maculada. Mariana é um nome doce. Vejo a minha avó sentadinha no sofá da sala, assistindo ao Silvio Santos e fazendo tricô.
Tenho um fetiche todo especial por Amsterdam. Amsterdam. Que bem me faz aos ouvidos. As imagens são muitas e multifacetadas. Um casaco de veludo. Jovens com livros nas mãos. Um sujeito rouco. Chocolate quente. A diferença de Amsterdam para os outros nomes é que ele me chama, me atrai. Como um magnete.
Não para comer steak com feijões, perambular de barco pelos canais, passear pelo Vondelpark de bicicleta, ver com os meus próprios olhos os desenhos de Anne Frank na parede de seu quarto, ou flanar livre, leve e solto pela Red Light District. Isso tudo eu já conheço. Sem desprezar as inúmeras justificativas esotéricas, viagem astral, fenômenos sobrenaturais ou o diabo a quatro, o que sei é que Amsterdam vive em mim. E eu nela. Faço sempre uma revisita. Uma viagem à essência da vida. Um déjà vu.

                             

sábado, 5 de outubro de 2013

Mudança de perspectiva

Uma vez um discípulo de um filósofo grego recebeu ordens de seu Mestre para durante três anos dar dinheiro a todos os que o insultassem. Quando esse período de provação terminou o Mestre lhe disse, “Agora você pode ir a Atenas para aprender a Sabedoria.” Quando o discípulo estava entrando em Atenas, encontrou um certo sábio que ficava sentado junto ao portão insultando todos os que iam e vinham. Ele também insultou o discípulo, que deu uma boa risada. “Por que você ri quando eu o insulto?” perguntou o sábio. “Porque durante três anos eu paguei por isso, e agora você me deu a mesma coisa de graça”, respondeu o discípulo. “Entre na cidade”, disse o sábio. “Ela é toda sua...” (A Arte da Felicidade – Um Manual para a Vida – Sua Santidade, O Dalai Lama e Howard C. Cutler, pg.194).
Os Padres do Deserto do século IV, um grupo de excêntricos que se retirou para os desertos de Scete, para uma vida de sacrifício e oração, ensinavam essa história para ilustrar o valor do sofrimento e das agruras. Ainda segundo Cutler, não foram apenas as agruras que abriram ao discípulo a “cidade da sabedoria”. O fator primordial que lhe permitiu lidar com tanta eficácia com uma situação difícil foi sua capacidade de mudar de perspectiva, de encarar a situação a partir de um outro ângulo.
Aldo Novak, numa entrevista dada a Marcia Peltier (há um vídeo no You Tube com a íntegra da entrevista), fala que realidade é uma coisa que muda de pessoa pra pessoa. Duas pessoas podem ver a mesma situação, e a partir da mesma experiência ter realidades completamente diferentes. Por exemplo: ele estava viajando, e descobriu que seu voo havia sido cancelado. A informação é de que teria de pegar um ônibus até aquela cidade maravilhosa que tanto queria conhecer, e, que naquele momento, tinha o aeroporto fechado em razão do mau tempo. Umas oito horinhas. Ele e mais um grupo adoraram a oportunidade que teriam para conhecer algumas outras cidades por terra. Outros, não. Rolou estresse, irritação, inconformismo, e mais uma infinidade de emoções negativas. A realidade mesmo não existe, segundo Novak; existem, sim, percepções da realidade. Você pode ver a situação de uma maneira que o beneficie. Não se trata do efeito Pollyanna. Você pode enxergar uma situação de maneira positiva e marcar gols a seu favor. Ou não. A escolha é sua.
Sua Santidade, o Dalai Lama, diz: “Parece que muitas vezes, quando surgem problemas, nosso enfoque se estreita. Toda a nossa atenção pode estar concentrada na preocupação com o problema, e nós podemos ter a sensação de que somos os únicos a passar por tais dificuldades. Quando isso acontece, creio que ver as coisas de uma perspectiva mais ampla pode decididamente ajudar.”
Com base em suas pesquisas filosóficas, Sergio Geia afirma que tudo isso diz respeito ao estado mental do ser humano. O problema está na nossa mente. E a solução também. Técnicas mentais são muito bem-vindas, e podem nos ajudar a tocar a vida, pois, livres de problemas — ah, camarada!, na vida tem isso não! Ampliar o enfoque tendo consciência de que não somos os únicos a sofrer aquilo. Procurar um ângulo mais positivo (marcar um gol a nosso favor). Encontrado, insistir, enfocar nele várias vezes. Fazer comparações: comparar situações, problemas em si. Ninguém acredita, mas essas técnicas relativamente simples podem ser instrumentos poderosos para nos ajudar a resolver os problemas diários da vida. É sério!!! Ah!, meu querido, nem só de crônica vive o homem...

sábado, 28 de setembro de 2013

Revistas velhas

 Motivo de brigas conjugais, o espaço ocupado por uma centena de revistas “Época”, velhas, que tenho aqui na minha estante, como um paraíso para os leitores da casa, pode estar com os dias contados.
Descansando, na companhia de livros que dormem serenamente à espera de alguém que os pegue e os leve para a cama quentinha, assim sempre entendi as revistas que, guardadas as devidas proporções, também poderiam executar dignamente este ofício, além de muitas vezes servir de base a uma pesquisa séria, um trabalho escolar ou, no mínimo, como companheiras para as horas solitárias perdidas num calor de um banheiro.
Certa vez, minha mulher queria entregar algumas delas às tesouras, para ilustrar um trabalho escolar. Eu urrei como urso brabo, dizendo que aquilo seria um crime contra a cultura, que onde já se viu, que servissem ao matadouro as revistas de fofocas, que as minhas revistas não, quês e quês e quês...
Mas hoje, repassando tudo, vendo a coleção esquecida nesses tempos virtuais, nem mesmo cumprindo minimamente seu papel de companheira de banheiro, chego à conclusão (mais uma vez, diga-se) que minha mulher estava coberta de razão.
Nós homens não damos o braço a torcer, mas a mulherada tem mais sabedoria no trato das coisas miúdas. Espere. Espere. Se você entendeu isso, apague! De jeito nenhum eu quis dizer que elas não entendem de coisa graúda, pelamordedeus, não é isso. Mas essas coisas práticas, do dia a dia, de como organizar uma gaveta, a mesa do jantar, separar o material reciclável, administrar uma casa e, por que não dizer, uma vida, ah, isso é com elas! Nós homens não sabemos arrumar nem o bolso da nossa calça.
Vejam só: ninguém consegue guardar a bagagem da viagem no porta-malas do carro com tanto jeito como a minha mulher. Olhando, você pensa: “não cabe”. “Cabe!”, ela diz. E com jeitinho, ocupando todos os espaços, mala pra cá, mala pra lá, isopor, bolsa com utensílios, comida, caixa de cerveja, tudo vai tomando o seu lugar e, de repente, como num passe de mágica, tudo está lá, organizado, limpo, firme.
Um dia eu me meti a esperto e guardei as coisas. Coube tudo. Uma beleza. Mostrei pra ela com orgulho. Ela não gostou muito do que viu, achou meio bagunçado, coisas apertadas, outras frouxas, mas não mexeu. Logo no primeiro quilômetro começamos a ouvir um barulhinho de isopor. Puts, é chato pra cacete! Fomos ouvindo até lá. Eu ouvi muito mais, é claro.
Coisa que não tenho paciência é com manual de instrução, bula de remédio, modo de usar etc... Dias desses peguei um tubinho que veio com a tinta e só consegui ler a palavra “condicionador”. Não tive dúvida. Mas estranhei, porque o negócio era oleoso, não espalhava, deixava o cabelo duro. Minha mulher entrou no banheiro e, com paciência, se dispôs a ler a caixinha. He, he, he, he. Não era condicionador. Era um óleo para usar apenas algumas gotas, e depois do banho. Olhei para o tubinho e só tinha a metade...
“Filhotaaa!!! Quando precisar de revista pra recortar, pode pegar as do papai, tá?!”

sábado, 21 de setembro de 2013

Xixi e AUMMMMMM

O meu xixi é sagrado. É só meu. De mais ninguém. Entro no banheiro, fecho a porta, me desligo do mundo. Abro a braguilha, me alivio na maior paz.
Muitos usam desse momento para encontrar o nirvana. Depois do xixizinho, descem a tampa da privada, sentam, buscam serenar a mente. Cinco minutinhos. Um interlúdio no estresse do trabalho. Inspirar. AUUUUMMMMMMMMM. Expirar. Inspirar. Expirar. Cinco minutinhos, e você é outro. Duas aliviadas com meditação durante o dia bastam. Uma de manhã. Outra, à tarde.
É no momento xixi que você tem tempo pra pensar nas coisas que lhe são realmente valiosas. O boteco de logo mais à noite. A lourinha do oitavo andar. O dinheiro da matéria que você enviou e que deve estar caindo na conta. Eita, caboclo oco pós-moderno!
Mas por que vir com esse papo de xixi, você deve estar se perguntando. Não tem coisa melhor pra falar, não? — o ímpeto policialesco de sempre emergindo das jubas da indignação. É que até no meu xixi, camarada, no meu sagrado direito de fazer xixi em paz, tão querendo meter a mão.
Acabo de ler que os homens que não tiverem pontaria ao usar os mictórios em banheiros públicos serão multados. A multa deve girar em torno de R$ 38,00. O projeto de lei municipal não determina a quantidade de urina fora do vaso que implicará em multa, nem como a infração será constatada. Não, meu amigo, isso não é piada. É um projeto sério. Também não é coisa de brasileiro, não! É coisa de chinês! A cidade que irá ser a pioneira no quesito xixi sem pontaria é Shenzhen, no sul da China.
A ideia pode parecer engraçadinha, piadas certamente estão circulando na rede, mas a mim, honestamente, provoca mais calafrios que risos. E se estão inventando essa asneira por lá, não vai demorar muito para a brilhante cabeça de um parlamentar tapuia processar a informação e apresentar algo parecido por estas bandas.
Sinto, honestamente, que estamos próximos da degola. Depois de proibirem o fumo em locais públicos, depois de proibirem o sujeito de beber, agora querem policiar o meu sagrado direito de fazer um xixizinho em paz. Não tem coisa mais importante pra se preocupar, não, ô?
Fico pensando se esse projeto é coisa de UM parlamentar ou de UMA parlamentar. Se for coisa de mulher, tá, é aceitável. Ela não conhece a natureza masculina. A fundo. Filhinha! Não se trata de pontaria, não, minha querida! Pontaria nós temos. E normalmente acertamos o alvo. Acontece que de vez em quando, ocorre um acidente; nós nos deparamos com um probleminha operacional não identificável, que causa uma pane no sistema. É como se tivéssemos, bem no meio das pernas, uma metralhadora giratória de alta potência, não letal, mas de fazer Bruce Willis ir aos píncaros do Himalaia de inveja. A culpa não é nossa. Há uma falha na operação. É como se houvesse uns furinhos numa mangueira de esguicho. A gente tenta dar marcha à ré, voltar ao ponto de partida, mas não dá. Não é fácil. Mas isso acontece por acidente.
É claro que um mictório público masculino é uma marginal Tietê na hora do rush. Acidentes acontecem. Talvez faltem limpeza e manutenção. Mas deixa pra lá. Deixa eu trabalhar. Poxa, não pode ser: por que agora essa de ficar olhando pra ver se não pingou fora?

sábado, 14 de setembro de 2013

Bodas de prata

Quando ela apareceu eu tinha 20 anos. Confesso que já fui dominado no primeiro encontro, e senti que nunca mais seria o mesmo. Meu lado macho-alfa foi escamoteado, até hoje eu o procuro dentro de mim. Nada. Sinceramente? Acho que fui abandonado. Não por ela; por ele, claro! Ela não, ela está aqui, agora, e anda sempre comigo. Não desgruda. Uns 24 anos. Já tentei dar-lhe um pé na bunda, mas é mais forte do que eu. Pra você ter uma ideia, logo, logo, estaremos comemorando bodas de prata. Olha como o tempo passa... O nome dela? Enxaqueca.
Acho que pior que ela, só mesmo uma dor de dente. Eu me lembro que na infância, ficava horas deitadão na cama com aquela esmagação pulsante, a sensação de que tinha alguém enfiando uma faca na minha boca. E torcendo. Não tinha remédio que desse jeito. Se bem que faz tempo que eu não sei mais o que é isso. Bastou um pouco de disciplina, fio dental, escovações e visitas regulares ao dentista. Uma fórmula simplória, mas que produz resultados interessantes. Enxaqueca não! Não há fórmula simplória.
Outro dia, um amigo me disse que nunca sentiu dor de cabeça. Não acreditei. “Porra, não pode ser! Nunca?” “Nunca. Eu não sei o que é isso”. O cara nunca experimentou a sensação de ter dor de cabeça. Pelamor...
Já fui a médicos. Já fiz tudo quanto é exame. Enxaqueca, o diagnóstico. Enxaqueca. Não sei se sou meio indisciplinado, se os remédios não foram lá com a minha cara, só sei que toda semana ela vem, às vezes no meio da tarde, chega como quem não quer nada, vai tomando seu lugarzinho (espaçosa!!!), e quando vejo, já me dominou completamente. Noutras, ela aparece pela manhã, sedenta. Vem que vem. Já teve noites que eu acordei em seus braços.
Viver com ela não dá. É sufocante. Essas atividades normais do dia a dia tornam-se um suplício quando ela aparece. Você se torna insuportável. Talvez por ela ser insuportável. Você só consegue enxergar um quarto (o seu, é lógico), uma cama (a sua), um travesseiro (nem preciso dizer) e uma escuridão absoluta.
É, meu querido, ela é fogo. Pra mim, só um jeito: aceitar sua presença asfixiante, e botar mais um na jogada. Sim, sim, relação a três.  Um ménage à trois. Não tenha dúvida. Se ela vem, eu corro pra gaveta e pego um Dorflex. Meu companheiro de tantos anos. Uma atípica relação a três. Se ela vem fogosa, eu chamo o meu amigo, e juntos damos conta da danada. Tá tudo certo.
Pensando melhor, parece que o meu lado macho-alfa dá indícios de sua vil existência em algum lugar dentro de mim (talvez onde Judas perdeu as botas). Mesmo sendo Dorflex o responsável por organizar meu caos, nessas horas, eu só me lembro dela, da fêmea, da menina, daquela que me balança, que me arrebata, que me tira dos eixos.
Tá. Sem injustiças vai: juntos, ele, ela e eu.
Bodas de prata.

sábado, 7 de setembro de 2013

Apetrechamento

Apetrechar a casa com brinquedinhos facilitadores é o bicho para o homem preguiçoso nesses tempos de pós-modernidade. As invencionices vão do bizarro ao útil, do luxo à ralé. Sem querer desmerecer a pródiga capacidade humana inventiva, é claro; aliás, eu mesmo, alhures, já cobri de louros essa tara incontrolável.
O garfo, por exemplo. Tão comum que a gente nem se dá conta da sofisticação de suas linhas. Dentes arrojados, leve e delicado. Até então, as pessoas comiam o alimento com as mãos. E o saca-rolha?  Que delicadeza e precisão. O anticoncepcional. Uma revolução social. Os óculos. O edredom. A escova de dente. A cadeira. O chuveiro. A taça de vinho. O espremedor de laranjas. O chinelo. A agulha. O cortador de unhas. O pente. O abridor de latas. O canudinho.
Eu tô em casa, deitadão, só zapeando os canais. Já pensou em ter de se levantar para mudar de canal? Ah!, seria uma maçada, não? E o elevador? Prédios de 20, 30, 150 andares. O que seria deles se não fosse o elevador?
Outro dia assisti à matéria sobre uma feira em São Paulo que anunciava babás eletrônicas, ferros que não queimam a roupa e panelas que cozinham sozinhas. O ferro atinge certa temperatura e se estabiliza. Se você esquecê-lo em cima de sua camisa preferida, não esquenta: ele esquenta, mas não queima. Não inventaram ainda o ferro que passe sozinho a roupa, mas panela que cozinha sozinha, ah!, isso tem! Ela cozinha o arroz, os legumes e o frango, tudo ao mesmo tempo e em compartimentos estanques. Você não precisa se preocupar. Agora esse negócio de babá eletrônica... sei não. Diz a reportagem que ela interage com a criança; até a voz da mamãe sai da geringonça.
Confesso que assistindo à reportagem, lembrei-me do Jacinto de “A cidade e as serras”. Sua mansão nos Campos Elísios tinha até elevador, mesmo com apenas 2 andares. Sua biblioteca tinha 30.000 títulos. Jacinto tinha 30 escovas de cabelo e muitas ocupações. Era um aficionado por modernidade. Lembre-se de que estamos falando de 1901, quando o livro foi publicado. Ele tinha fonógrafo, telescópio, telefone, telégrafo, relógio que marcava a hora de todas as capitais e o curso de todos os planetas, máquina de escrever, de calcular, conferençofone, teatrofone, calorífero, aromatizador, lumes elétricos, e tudo, tudo o que você possa imaginar ele tinha lá no seu 202. Dizia que a humanidade vivia muito mal apetrechada.
Apesar de todo o conforto, Jacinto, num certo momento, perde o gosto pela vida. Perde até o interesse pelos alimentos. Não tem mais apetite. Vive solitário e macambúzio. Um de seus empregados diz que ele sofre de fartura.
Vai encontrar a felicidade (a legítima) nas serras, na vida simples. Num trecho ele diz: “Agora, Zé Fernandes, estou saboreando esta delícia de me erguer pela manhã, e de ter uma só escova para alisar o cabelo. Tinha vinte! Talvez trinta! E era uma atrapalhação, não me bastavam... Nunca em Paris andei bem penteado. Assim com os meus setenta mil volumes: eram tantos que nunca li nenhum. Assim com as minhas ocupações: tanto me sobrecarregavam, que nunca fui útil”.
Na ilusão de pescar a felicidade num rio de apetrechos e coisa e tal, bilhões de Jacintos pescadores pós-modernos vagam por aí. Ah!, a humanidade não tem jeito... O que mais me espanta é que o velho Zé Maria, há mais de cem anos já tentava nos enfiar goela abaixo a perniciosidade da prática do consumismo desenfreado.

sábado, 31 de agosto de 2013

Ritmos

Cada um tem o seu ritmo. O ritmo de cada um pode ser acelerado ou lento. Lento ou acelerado, não existe o ritmo certo, existe o ritmo de cada um. E cada qual conhece o seu ritmo e se dá bem com ele. E não adianta projetar o seu ritmo no outro. Ritmo não se projeta. E não se muda. O ansioso, o apressado, não vai diminuir a cadência. O lerdinho não vai acelerar. Não adianta. O ritmo está na essência de cada um. E com essência não se brinca.
Eu, por exemplo. Aprecio as pausas. Prefiro fragmentar o meu dia, as minhas tarefas, o meu trabalho. Isso me permite dedicar profundidade e esmero em cada uma de suas partes. Ando devagar, não porque já tive pressa, mas porque é da minha essência. Minha mulher, ao contrário, é ágil, gosta de resolver tudo com muita rapidez.
Toca a campainha. Estou no meu quarto sossegado lendo um livro. Levanto devagar, calço os meus chinelos, dou uma coçada no cocuruto e vou. Já escutei várias vezes ela me pedindo pra ir depressa. Digo: “meu bem, o interesse é de quem está batendo. Não meu. Ele que espere. Se está realmente interessado, vai esperar”. Geralmente eu chego e não tem mais ninguém. Com certeza, era da turma dos ansiosos.
Em outras vezes, quando a mesma campainha toca, minha mulher sai correndo pra atender. Quer resolver tudo. Quando a vejo correndo pela escada eu fico cansado.
Com o telefone é a mesma coisa. Quando toca, eu não saio voando para atender. Se der tempo, tudo bem; se não der, que liguem de novo. Minha mulher sempre consegue chegar a tempo de ouvir a moça do telemarketing oferecer um novo cartão de crédito.
Qual o melhor ritmo?, eu lhe pergunto. Lento ou acelerado? Hein? Hein? Você é daqueles que dirigem o dia com certa inspiração bovina, ou da turma dos rapidinhos, que corre pra não perder a hora? Você curte mais uma flanada no parque, olhando flores e arbustos, ou uma corridinha pra manter a forma? Lento ou acelerado? Hein? Diga lá.
Parafraseando meu querido mestre, o Braga, digo que se você responde que não existe um ritmo melhor, e que o ritmo está na essência de cada um, ah!, você é uma pessoa inteligente e acima de tudo, antenada com o propósito da crônica e o pensamento do cronista. Se você responde “nem tanto ao céu, nem tanto à terra”, você é uma pessoa que não se deixa enganar por sofismas, equilibrada, e bem resolvida em todos os aspectos de sua vida. Agora, se você responde que depende, aí meu amigo, eu só posso concluir que você é possuidor de uma inteligência rara, pra poucos, evoluída.
Você já imaginou se o Ayrton Senna fosse lento? Ou se o Neymar dominasse a bola e demorasse alguns minutos pra decidir o que fazer? Já imaginou o entregador de pizza andando a trinta por hora? E o podólogo com pressa, querendo dar um jeitinho rápido na sua unha encravada? O dentista, atrasado para a consulta anual com o urologista, querendo obturar seu dente em segundos?
Pois é... O ritmo está na essência, e a essência do ritmo deveria ditar as escolhas humanas.
Divagações... Divagações...
Acordo na padaria. Olho pro relógio.
“Moça, por favor, cadê os meus pães?!”

sábado, 24 de agosto de 2013

Pneumonia

Febre alta. Tosse. Dor no tórax. Nas costas. Estes sempre foram pra mim os sintomas clássicos da pneumonia. Quando o médico, com aquela calma budista de ser, deu uma olhada nas chapas e disse: “pneumonia. E não é pequena”, eu quase surtei.
Tinha tosse. Uma tossinha seca. Não tinha febre, muito menos febre alta. Não tinha dor. Não tinha nada! Mas tinha pneumonia. E não era pequena. “É caso de internação. Não dá para tratar em casa”. Ele me mostrou o raio-X. Um dos pulmões, pretinho. O outro, com aspecto esbranquiçado. “Tá vendo. É catarro”.
O Super-Homem entrou em ação. “Não é nada. Vamos tratar e pronto. No hospital há mais recursos, enfermeiros de todos os lados, médicos, equipamentos, remédios. Vai ser melhor.” Ela chorando e eu tentando convencer a mim e a ela: “minha mãe teve pneumonia. A Samantha teve. O Felipe. Vai dar tudo certo”. Uma rocha falante.
Lá no quarto, viajando entre a cidade e as serras, seu rostinho sempre me tomava, ainda que belíssimas fossem as paisagens parisienses. Quando a Jaqueline, a fisioterapeuta, começou, lembrei-me do Ronaldo na cabine de transmissão, chutando o vento quando a bola caía no pé do atacante. Pois eu respirava. Uma. Duas. Prendia a respiração. Levantava os braços. Ela me olhava e não entendia, afinal, a paciente era você!
Minhas caminhadas domingueiras nunca foram melhores, pode apostar. Caminhar por entre jardins e calangos a seu lado foi bacana e eu via seu sorriso e sua carinha corando de novo. E quando você desatava a rir com minha pergunta démodé sobre o tal Po, se era um dos Teletubbies? Quando eu iria imaginar que o Po era na verdade Pou, uma simples batata? Tá, um alienígena.
Posso lhe ser franco? Agora posso, já passou, né? E aproveito para desmitificar aquela história de pai herói, Super-Homem, que é pau pra toda obra. Que super-herói que nada! Esse que vos fala tem as mesmas fraquezas que qualquer ser humano. Viu, Johnny? É pra você também. Tem medo. Sofre. Erra. Chora. Dentro do carro. Debaixo do chuveiro.
Chora porque não existe controle absoluto sobre todas as coisas. A vida escorrega pelas nossas mãos como peixe se debatendo. Não há garantias de nada. E esse é o caminho a seguir. Assim é a vida. Não pensem que viver é um conto de fadas, e que tudo vai acontecer pra vocês facinho, facinho. Nada disso. Quando ela lhes der uma rasteira, não chorem apenas, mas aproveitem, pois ela estará lhes dando uma oportunidade de afiar a espada.
A vida é complicada, e vocês precisam saber disso. Cheia de tormentas, que a gente quer bem longe. Não quer nem pensar. Não adianta! Precisamos de ferramental. É isso. Guardem bem essa palavrinha: ferramental. Não adianta querer, pedir pra Deus, pra Alá, pra Buda, pra quem quer que seja, uma vida livre de percalços. Isso não existe. Eles não vão desaparecer da nossa frente. Estão em tudo quanto é lugar. Você pode estar aqui ou em Amsterdam. Busquem ferramental emocional para vivenciar seus problemas, o sofrimento, a dor, a doença, as perdas.
Foi essa rocha (pra você), despreparada, que teve de encarar seu probleminha. Cinco dias, filhota. E você de volta. Pareceu uma eternidade.

domingo, 18 de agosto de 2013

Uma engrenagem, amizade!

Conversa vai, conversa vem, e eu vi um World Trade Center de pires crescendo sobre a nossa mesa. A tarde ensolarada foi dando lugar a uma noite convidativa. Como resistir e tomar apenas um chopinho, se o bicho vinha trincando de gelado, descia macio e a espuma era bem mais que um creme?
Esse pessoal do Giovannetti é bom para tirar um chope. Honestamente: a maioria dos bares por onde passo trata muito mal o velho e bom chopinho. Tem lugar que até se esquece do colarinho. Como? Um chope sem colarinho? O interessante é que em todas as mesas cresce uma torre de pires que denuncia a quantidade de taças consumidas. Pensa que alguém se preocupa com isso? O importante é beber, comer os petiscos e se divertir. E se não quer tomar chope, tudo bem. Um casal de idosos simpático — os dois com os cabelos totalmente brancos — toma uma soda, come um pastel e vai embora feliz da vida. Os jovens preferem sorvete com suspiros e morango.
Eles possuem até um dicionário próprio para você pedir os aperitivos. Croquete de carne, por exemplo, no Giovannetti se chama “rolha”. Kibe frito é “milionário”. “Uma engrenagem, amizade!” E o garçom presenteia o cliente com uma bela de uma empada. “Bigode” é camarão empanado. “Envelope” é pastel de carne ou de queijo. E tem um tal de “boca de anjo”. Um corte criado por um antigo chapeiro deles que divide o sanduiche em oito pequenas partes iguais.
Eu não conhecia o Giovannetti Rosário, da General Osório. Como ficava próximo ao nosso hotel, deu pra beber à vontade; depois, foi só pagar a conta e voltar a pé, sem se preocupar com lei seca ou se o lugar era atendido por táxi ou não.
Notei que muitos chegavam sozinhos, pediam um chope e ficavam tranquilos na mesa lendo um jornal, ou mesmo um livro, ou ainda assistindo à televisão. Tinha várias mesas assim, e deu pra perceber que aquilo era muito comum. Muitos saíam do trabalho e passavam por lá, pra tomar um chopinho, comer qualquer coisa, depois ir pra casa.
Tem fulano que gosta de rotular sicrano que faz as coisas sozinho, como jantar num restaurante, beber num bar, ou mesmo pegar um cineminha. Qual o problema? As pessoas associam estar sozinho com solidão. Tem muita gente que está com companhia, mas no fundo está só. Tem muita gente que está só, mas está feliz da vida de estar só, porque acima de tudo, escolheu estar só. Quer prova maior de liberdade que essa?
Pois eu não estava só, nem com minha mulher (que saudade, mor! Você não imagina como me fez falta). Estávamos eu e o Jota, participando, naquela semana, de um curso sobre processo judicial eletrônico-PJE.
Era só um chopinho no final de uma segunda-feira quente. Mas foram muitos que até perdi a conta. E não foi só na segunda, não! Foi na terça, na quarta, na quinta... Uma multiplicação de torres gêmeas, mas deixa isso pra lá.
Ah!, o Giovannetti Rosário, da General Osório, fica em Campinas.

Comunicado

O autor informa que suas crônicas estão sendo publicadas com exclusividade na página Crônica do Dia ( www.cronicadodia.com.br ). Convida...