sábado, 27 de abril de 2013

Encontro

Fazia um tempão que estávamos andando quando de repente Maria parou e me disse que tínhamos chegado. Eu pensei que seria um lugar só nosso. Um lugar deserto. Uma cabana à beira de um lago. Uma praia. Eu tava a fim de pegá-la e não era de hoje.
Na verdade, encontrei uma espécie de comunidade alternativa. Homens de cabelos compridos e barba trabalhando, mulheres dançando loucamente, velho porra-louca meditando. Alguma coisa relacionada a religião, foi o que pensei.
Tinha um grupo que trabalhava numa igreja. Alguns homens fortes carregavam pedras para dentro, outros preparavam uma massa escura, e tinha um jovem franzino que orientava e indicava o que fazer.
Foi este jovem que veio até nós.
“Aquela capela está me dando um bocado de trabalho, mas logo vai estar pronta! Na região da Porciúncula eu reconstruí uma parecida”.
“Você reconstrói igrejas?” – perguntei, já convencido de que meu programinha de fim de semana tinha virado água. Antes tivesse ido pescar com o Patrick.
“Não, não... Hoje eu não sou mais um restaurador de igrejas. No passado eu fui. Desenvolvi algumas habilidades... Por isso me propus a ajudar aqueles homens. Mas eu descobri que para mim, o importante não era restaurar igrejas. Existem homens hábeis que sabem fazer esse serviço melhor do que eu. A minha missão é outra: cuidar de gente”.
Belo lugar Maria me trouxe, pensei.
Esse trabalho me dá um grande prazer. Lembro-me da restauração da igreja de São Damião. Eu não dispunha de material nem de gente disposta a me ajudar. Comecei do zero. Possuía apenas as minhas mãos, a minha vontade... Não desanimei! Primeiro, convenci o capelão de São Damião de que a igreja precisava ser reconstruída, ela estava caindo aos pedaços. Depois, angariei com o povo bondoso os materiais de que precisava. Pedi, implorei, consegui até que alguns camponeses que trabalhavam nos vinhedos da região me dessem uma mão. Digo que foi um trabalho extraordinário”.
Ele continuou.
“Mas eu descobri que minha missão é cuidar de gente, não de igrejas. Eu não consigo entender como é possível alguém passar uma vida inteira sem fazer algo por seu semelhante. A vida, nesse caso, não tem valor. As pessoas são muito egoístas e só pensam nelas próprias. Todos nós buscamos a felicidade. Pois vou lhe revelar um segredinho: a base da felicidade está em ajudar os outros. Faça alguma coisa por alguém e pode ter certeza: você experimentará um pouquinho do que chamamos de felicidade”.
Fez uma pausa. Parecia refletir sobre alguma coisa. Olhou para mim e sorriu.
“Posso ver que você é um moço simples. Isso é bom. A simplicidade é a rainha das virtudes. Nós precisamos de pouco, muito pouco para viver. Viva com simplicidade e ajude as pessoas. Faça isso e você será uma pessoa feliz”.
Minha vontade foi dar uma gargalhada na cara dele, mas me contive. Um charlatão, isso sim. Um moço simples...
Ele se despediu com um abraço em Maria, outro em mim, e seguiu para a capela.
Maria gritou:
Francisco?”
Ele se voltou para nós.
Obrigada!”
Quando abri os olhos não encontrei Maria, nem Francisco, nem aquela comunidade hippie, mas os olhos molhados de meu pai. Não entendi nada. Parecia que não me via havia tempos. E foi o que aconteceu. De tanto cheirar cocaína eu tinha sofrido uma overdose e estava em coma naquele hospital havia mais de seis meses.
Parte do que lhe contei eu sonhei. Ou vivi. Ou morri? Sei lá. Só sei que mudou a minha vida e a de muita gente.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

Armando Salles, domingo de manhã

Ah, como eu gosto de perambular pela Armando Salles no domingo de manhã! Sei que tem paisagens mais interessantes pela cidade, mas a ruazinha que desemboca na Santa Teresinha, e que, digamos, serve apenas para compor elenco, como se diz no jargão do futebol, tem lá o seu charme.
É bom demais dar um pulinho na padaria da esquina e encontrar os amigos tomando cerveja nas primeiras horas do dia. Que café, que leite, que pãozinho, que nada! É cerveja e petisco. E tem coisa melhor?
Eu gosto do sossego, do som distante dos cachorros latindo, da velhinha que sai de casa vestida com o melhor que tem para gastar na missa, ou daqueles que preferem usar as primeiras horas do domingo para jogar água nas plantas, para uma boa caminhada, uma pedalada, ou apenas para bater papo ou comprar o jornal.
Quando o dia começa com um solzinho, então, muito melhor. A cidade dorme e as ruas celebram o sono dos desassossegados, você consegue tempo para olhar as pessoas, ouvir os sons, sentir os aromas, coisa que não fazemos mais.
No passado, funcionava ali um restaurante chamado Potenza. Minha mulher e eu iniciamos nosso namoro lá, e depois voltamos muitas vezes para saborear uma delícia de pintado na brasa regado a um bom vinho branco. O restaurante era bem frequentado, tinha um cardápio variado e delicioso, mas, por questões que desconhecemos, um dia cerrou as portas, e pintado na brasa nunca mais.
Um dia, eu estava passando por lá (uma manhã de carnaval; se a memória não me falha era uma segunda-feira, tão morta quanto o domingo),  e encontrei um grupo que chegava esfuziante a um dos edifícios com as fantasias na mão, conversando alegremente sobre o desfile.
Fiquei a imaginar as emoções que eles experimentaram na avenida. Pelo que ouvi, eles vinham de São Paulo. Lembrei-me da vez em que desfilei nessas terras, por uma escola de samba já extinta, a “Vai Quem Quer”, que surgiu do bloco tradicional do mesmo nome.
Fomos a primeira escola a desfilar. Antes, na casa de uns amigos ao lado da avenida, bebemos cerveja e comemos salsicha e outros aperitivos. No horário marcado, despencou do céu um aguaceiro que lavou a alma. E como foi bom.
Melhor ainda, o desfile. Pular e cantar o samba, sentir o ritmo da bateria, ver as pessoas sambando na arquibancada, acenando. O tempo passou a jato e quando demos conta o desfile tinha terminado. Uma pena. Deu uma vontade imensa de voltar, de repetir a experiência que renova o substrato da vida.
Essa vontade que eu via estampada nos olhos daquelas pessoas e suas fantasias. Que tiveram que cruzar a linha de chegada, que tiveram que tirar a fantasia do corpo, que tiveram que pegar o carro e voltar à cidade e para as suas casas. A vontade de que aquele momento não terminasse nunca.
“Amizade! Bota aqui uma gelada! E com espuma!”
Ah, como eu gosto de perambular pela Armando Salles no domingo de manhã!
P.S.: excepcionalmente publicada nesta sexta-feira

sábado, 13 de abril de 2013

Trechos de um concerto

20:30: se ele não tocar o Bolero, ai, ai. Ela vai reclamar. Onde já se viu não tocar o Bolero? Ela conta numa rodinha que no primeiro show, em junho, ele não tocou o Bolero. Que decepção! Tinha esperado tanto aquele momento. Disse pra si mesma, ela diz na rodinha, que nunca mais voltaria. E lá estava ela de novo. Boba. 23:15: no fundo está arrependida, já antevendo o fim. O jeito é assistir os DVDs que tem em casa. Todos eles têm o Bolero. Estava pensando nisso quando ele anunciou a entrada de mais um músico. E no meio de seu inglês, algo parecido com Ravel. 03:35: deita na cama com a ária ainda tocando na cabeça. Que beleza! Tem vontade de ligar o DVD, rever aquele momento mágico, mas o marido dorme a seu lado como um urso. Viúva de um marido vivo, pensa.

sábado, 6 de abril de 2013

Conserta Félix Jr.

A violência está galgando o Everest. Tem muita gente levando tiro por aí. A bala certeira ou a bala perdida encontram o alvo desejado, ou não, e matam. E elas vêm de todos os lados. Se você não tem mais segurança dentro de casa ‒‒ eu tive um carro surrupiado da minha garagem ‒‒, imagine fora.
A agressividade da espécie não é só dirigida contra a própria espécie ‒‒ aliás,  é bom que se diga: o homem é o único animal que tortura seu semelhante por puro prazer, o que é uma lástima ‒‒, mas também contra tudo que está à sua frente.
A bola da vez foi Jorge Amado. Uma estátua de resina bronzinada, erigida em homenagem ao centenário de seu nascimento, que fica lá em Itabuna, no sul da Bahia, da noite pro dia acordou com seis buracos abertos à bala, além de marcas de pedradas.
Atiraram numa estátua. E não foi um tiro, uma bala perdida. Foram seis. Chama a atenção, e basta uma visitinha no Google para comprovar, o número de monumentos e estátuas erigidos em favor de um grande herói da brasilidade, destruído por esses vândalos.
Em Ubatuba, por exemplo, José de Anchieta peleja. Tenta resistir, mas sempre tem gente levando o pauzinho que tem na mão, que faz alusão ao Poema à Virgem, escrito nas areias da Praia do Cruzeiro. Não querem saber da história. Não querem saber de nada. Querem destruir. O pauzinho, a mão, o braço.
Em Taubaté, ergueram uma estátua graciosa do Jeca Tatu na Rua Humaitá. Não é que deixaram o coitado do Jeca pelado, e até o seu cachimbo tiveram a pachorra de levar! Vai ver algum ser inteligente e sensível às artes, com certas veleidades historiográficas, pretende abrir um museu.
Mas não são só monumentos. Os vândalos destroem tudo. Postos de saúde, creches, escolas, terminais de ônibus, orelhões, banheiros públicos, lixeiras, imagens de santos, aparelhos de ginástica ao ar livre, placas de trânsito, ninhos de tartaruga e até cemitérios, apenas pelo prazer de destruir.
E não é só aqui. Outro dia destruíram diversos monumentos na Rua dos Poetas, em Santiago.  62 mil garrafas do vinho Brunello di Montalcino, do selo exclusivo Soldera, na vinícola Casse Basse, na Toscana, foram destruídas por vândalos, para as lágrimas dos apreciadores de vinhos requintados. Na Crimeia–Ucrânia, eles puseram abaixo o monumento da Cruz, de 4 metros, na Montanha da Cruz em Oreanda, instalado pelos paroquiais das igrejas de Yalta, em memória daqueles que morreram na 1ª Guerra Mundial, consagrado na véspera do 90º aniversário da sua conclusão.
A destruição corre solta. Não há prefeituras, dinheiro, nada nem ninguém que resolva a situação. Eles consertam, dias depois está tudo quebrado.
Minha filha, que me acompanhava enquanto eu escrevia esta crônica, depois de tudo lido e a conclusão chinfrim, me deu a ideia: chama o Conserta Felix Jr!
Depois ela me explicou o filme.
Boa, filha! Boa!!!
Eis aí um trabalhador que como muitos por aqui, ganham a vida glorificando a deseducação alheia.
Hã?

Comunicado

O autor informa que suas crônicas estão sendo publicadas com exclusividade na página Crônica do Dia ( www.cronicadodia.com.br ). Convida...