sábado, 23 de fevereiro de 2013

O suprassumo da crueldade

Num dos livros que escrevi ‒‒ Confidências de um sacerdote ‒‒ há uma passagem que faz alusão à ditadura militar. Era um churrasco, e a família, que estava recebendo a visita do padre da comunidade, conversava ao redor da churrasqueira. Num dado momento, Arcádio, o proprietário da fazenda, disparou:
“(...) gente roubando dinheirama do povo! Esses políticos aí! Você acha certo um sujeito desses pegar dinheiro que podia estar ajudando os pobres? Dando comida pra essa gente? E a saúde? Não falaram que essa merda de imposto era pra saúde?” O padre respondeu: “mas existe sim gente bem intencionada, pessoas sérias que querem fazer alguma coisa, mas infelizmente parece que não conseguem. Talvez o próprio sistema não permita”. “Que sistema, padre? A verdade é uma só: ninguém quer saber de nada! Bom mesmo era no tempo dos militares! Naquele tempo não tinha essa roubalheira de hoje!”
Esse discurso eu já ouvi na vida real, saindo da boca de gente idosa e, pasmem, da boca de gente jovem.
Não é de se espantar que muita gente ingenuamente ainda acredite que nos anos de chumbo nada aconteceu de horrível. Na época do Terceiro Reich, mesmo quem morava em torno de Treblinka, por exemplo, poloneses na maioria, não sabia direito o que se passava por lá. Podia imaginar, é claro, mas não tinha certeza das atrocidades que aconteciam nos campos.
No dia 29 de janeiro de 2010, a “Isto É Independente” publicou uma matéria sobre o senhor Carlos Alexandre Azevedo, que foi preso e torturado pelos militares quando era bebê, que cresceu agressivo e isolado e que aos 37 anos ainda sofria os efeitos dos anos de chumbo: vivia recluso, sem trabalho nem amigos e sofria de fobia social.
O que aconteceu foi o seguinte: os pais de Carlos eram militantes de esquerda e já estavam presos quando policiais invadiram a sua casa, na zona sul de São Paulo, e o levaram para a sede do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops). Era 15 de janeiro de 1974. Carlos tinha 1 ano e 8 meses.  Bem armados e truculentos, os agentes da repressão o encontraram na companhia da babá.  Chegaram dando ordens. Exigiram que os dois permanecessem imóveis no sofá. Apenas Joana obedeceu. Como castigo pelo choro persistente, Carlos Alexandre levou uma bofetada tão forte que acabou com os lábios cortados e um dente quebrado. Foram mais de 15 horas de agonia. Presas políticas disseram ao pai que o menino fora torturado no Deops, que tinha sido vítima de choques elétricos e outras sevícias. Que foi jogado no chão e bateu a cabeça.  Os policiais falavam que, naquela idade, ele já era doutrinado e perigoso. Eis a síntese da matéria.
A monstruosidade disso tudo é algo que embrulha o estômago. E isso é apenas um capítulo, uma pequena parte dessa excrescência chamada ditadura militar, que arruinou famílias inteiras, que desapareceu com gente de bem, que transformou em pó pessoas de carne e osso.
Na semana passada a ótima jornalista Eliane Brum informou pelo Twitter que Carlos Alexandre Azevedo tinha se suicidado.
O suprassumo da crueldade teve seu desfecho.
Ah, essa expressão não é minha, mas da mãe de Carlos Alexandre.

sábado, 16 de fevereiro de 2013

Cadê o samba?

Quantas vezes eu não ouvi a mesma ladainha: naquele tempo que era bom; agora, tudo acabou. Seja carnaval, futebol, música e por aí vai.
Essa questão repercutiu quando o sambista Zeca Pagodinho, acometido por uma certa dose de saudosismo, disse à Folha em 04/02/2013, que o carnaval acabou, que não fazem mais carnaval como antigamente, que carnaval bom mesmo era o do passado. Será que ele está certo?
Estive num baile de clube na segunda-feira de carnaval. Procurei o samba para brincar, mas não encontrei. Cadê o samba?, quis saber. Vi a diversidade sendo mandada para a Sibéria, sendo ignorada no meio daquele barulho infernal de guitarras e distorções, sendo relegada a segundo plano pelo axé ‒‒ a música baiana que toma conta de todos os palcos de bailes de carnaval. Até o rapper sul-coreano Psy eu encontrei. Poxa, num baile de carnaval?
Percebi claramente que a banda era performática, estava mais preocupada em fazer as coreografias, vestir-se de mulher maravilha e super-homem, tocar as músicas que tocam na rádio, e fazer as pessoas tirarem os pés do chão. Que coisa mais chata esse negócio de “tira o pé do chão!”. Já encheu.
Mas são novos tempos, e contra isso tudo não dá pra fazer nada, apenas esbravejar.
O carnaval acabou? O profeta do apocalipse Zeca Pagodinho tem razão? Um detalhe: tinha muitos jovens lá. E dançavam freneticamente.
Um coach famoso disse que realidade não existe. Existem percepções. E a do Zeca é correta, não duvide. Só que para aquela molecada esfuziante, o carnaval tava bombando. Se você perguntar se eles gostaram eles vão dizer que sim, que adoraram, principalmente quando a banda tocou o Psy. “Ah, aí sim ficou maneiro!” Se você perguntar para a vovozinha comendo pipoca, que estava esperando a banda tocar Beth Carvalho, ela vai dizer que o baile estava horrível.
Percepções, meu amigo. Só isso. É por essa razão que é um saco ouvir alguém dizer que determinado negócio estava ruim, horrível, uma porcaria, e outros adjetivos mais, como se aquela opinião fosse a mais sólida das verdades. Não, não é. Pode ser que seja pra ele, mas não é para muitos. É apenas a percepção de quem está descontente, insatisfeito com o que vê. Mas qualquer percepção, por mais razoável que seja, está longe de ser uma verdade absoluta, e não é uma realidade.
No entanto, que se danem os valores do coaching. Esbravejemos, amigos! Esbravejemos!
Carnaval sem samba não dá, né?!  Saudosismo ou percepção, o fato é que senti saudades da percussão, dos sambas-enredos ‒‒ novos ou velhos, dos sambistas, do bumbum paticumbum prugurundum, do tum-tum-tum-tum. Procurei o samba, que na minha imaginação poderia estar lá, escondidinho, pronto para surgir triunfalmente na última meia hora de baile. Que nada....
O que vi foi a “baianalização” do carnaval e diversidade zero.
Zeca, tô contigo e não abro!
P.S.: quem me salvou do baixo astral musical foi ela, como sempre: dá-lhe, Furiosa!!! 

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Assumpção

Meu amigo Rogério Machado fez um registro bastante interessante no facebook. Ele andava pela Avenida Faria Lima, quando parou atrás de um fusquinha, dirigido por um homem idoso. Fico pensando, disse ele, até quando veremos uma cena dessas. Um senhor e seu fusca dirigindo pacificamente em meio ao trânsito denso e pesado de nossa cidade, onde carros mais novos, com vidros fechados e escuros, dirigidos por pessoas apressadas e ilhadas em seus óculos escuros e som alto, climatizados pelo ar condicionado ligado, disputam cada centímetro e segundos de vantagem em relação aos outros, para chegarem mais rápido aos seus destinos.
 É como se para ele, continua, a despeito dos cabelos totalmente brancos e inúmeras funilarias na lataria de seu velho fusca, o tempo não passasse. E não importa o quanto a vida e as coisas se modifiquem, ou mesmo se compliquem. Ele dirige seu fusquinha, e vai embora...
Confesso que saboreei cada palavra desse registro feito pelo meu amigo de justiça. E o romantismo que aflui desse corriqueiro fato do cotidiano me trouxe à mente o velho Assumpção.
Assumpção ‒‒ escreve-se assim mesmo, com o “pê” antes da “cedilha” ‒‒ era um sujeito das antigas, como seu próprio nome atesta. Nasceu no ano de 1922, na pequena cidade de Bananal. Embora com nome pomposo, Assumpção logo passou a ser chamado de Sansão ‒‒ muito mais fácil e simples; para os netos, que nas férias curtiam a casa dos avós e o seu pé de araçá ‒‒ hoje raro de encontrar, e o aguardavam ansiosos para comer as balas e chocolates e docinhos que ele trazia do bar, vô Sansa.
Pois é. Assumpção era dono de um boteco na Marechal Arthur, a poucas quadras da Praça Santa Teresinha: o “Nosso Bar”.  E o bar era a sua vida. E, talvez, a vida de muitos.
Dizem os grandes cronistas e os boêmios de plantão, que boteco bom é boteco ruim, simples, barato, largado. Nada de coisa chique, bem arrumada, organizada, confortável. Ao contrário. Boteco bom tem que ter copo americano, mesa de lata, gente vestindo camiseta sem manga e bermuda, petiscos da terra e uma boa cachaça. Tá aí a descrição exata. Tá aí o “Nosso Bar”. Ponto de encontro da nata da cachaça, da boemia taubateana, da jogatina libertária.
Mas me lembrei do velho Sança porque ele poderia mesmo, muito facilmente, protagonizar a bela cena descrita no início dessa crônica, se Deus Nosso Senhor não o tivesse tirado do nosso convívio e o levado, são e salvo, para o paraíso do céu, onde a vida, dizem, é eterna, onde a grama é verdinha, verdinha, onde o branco das roupas torna tudo muito puro e sublime, mas onde não tem cachaça, nem carne seca com macacheira, nem mulher, nem boteco, nem jogatina, nem devassa... Paremos por aqui, amigo. Paremos.
O Assumpção tinha um fusquinha. Um montão de vezes, muitos viram a cena ‒‒ ele serpenteando pelas ruelas dessa terra de Lobato, com seu carrinho branco e seus cabelos cinza. Talvez ele não dirigisse com a mesma calma, e certamente não inspiraria o Rogério a descrever aquela cena com tamanho romantismo. Mas não seria pressa, ou um descompasso por causa dessa vida urbana sem pé nem cabeça, disso eu tenho certeza.
Assumpção era o meu avô.
Às vezes sonho com ele na rua, alegrinho, alegrinho, dando o fusquinha para eu correr atrás de mulher. Às vezes sonho com ele dirigindo seu fusquinha, e indo embora...
P.S.: agradeço ao Rogério Machado por me autorizar a colocar seu texto na crônica.


sábado, 2 de fevereiro de 2013

Revelações

Após ler um artigo do Pondé, na Folha, resolvi ver o filme. Revelações é baseado no livro A Marca Humana, de Philip Roth. Já tinha lido o livro, que é maravilhoso e que mostra as entranhas de um preconceito racial estúpido. Já o filme, embora conte com a participação da lindíssima Nicole Kiedman no papel de Faunia Farley, foi massacrado pelo próprio Roth que chamou o roteirista Nicholas Mayer de horrível. Mas tem lá os seus méritos, a contar pela própria história, e eu gostei. Uma das passagens mais bacanas foi ver Coleman Sillk ‒‒ interpretado pelo extraordinário Anthony Hopkins, dançando na varanda de sua casa, com o escritor Nathan Zuckerman ‒‒ interpretado pelo ator Gary Sinise, a música Cheek to Cheek (Irving Berlin), evidente alusão à cena do filme O Picolino, protagonizado por Fred Astaire, que além de cantar a mesma música lindamente, dançou-a com a não menos linda Ginger Rogers, numa das cenas antológicas do cinema. Clique aí embaixo e veja. Final de semana maravilhoso para todo mundo!












Comunicado

O autor informa que suas crônicas estão sendo publicadas com exclusividade na página Crônica do Dia ( www.cronicadodia.com.br ). Convida...