Não parei de correr para não perder o
ritmo, mas como sempre ele estava lá, na mesma praça, no mesmo banco, as mesmas
flores, o mesmo jardim. Confesso que demorei alguns segundos para decifrar o
mistério. Quando caiu a ficha, senti o coração apertar: cadê o seu companheiro?
E num piscar de olhos, a imagem tomou conta da tela, fazendo inundar a visão
com o pequeno orifício de seu orelhão (Marcão sempre foi orelhudo), e eu notei,
flanando quase imperceptível, os fios, finos e frios, de um minúsculo fone de
ouvido.
A imagem, a outra, sempre provocara
boas sensações: ele ali, sentadinho, alegre, bem ao lado de seu radinho (e não
eram companheiros?), ouvindo canções antigas, sereno, às vezes olhando pro céu,
alheio ao movimento regular de carros e de gente que passava com pressa, e que
nem notava a sua presença.
Deitava no pensamento umas lembranças saborosas,
com cheiros e sons e tudo. E nesse mosaico memorialístico que me inundava, era
ele quem desempenhava um protagonismo rudimentar. Eu me lembrava do meu, velho
e bom, aquele que me acompanhou durante a infância, e que me acordava todas as
manhãs gritando uma moda de raiz, junto com o cheirinho aconchegante de café
passado a filtro de pano.
Não sei se o Marcão é aposentado, se é
rico, se trabalha para alguns comerciantes do entorno (já o vi várias vezes
varrendo a calçada), ou se vive à custa de sua mulher ou de seus pais. Também,
isso não importa. O que importa é o que o Marcão representa para mim: o símbolo
da resistência, o símbolo do “não” aos avanços desenfreados de um mundo louco.
Não, Marcão, você não. Não é a simples
troca de um aparelho velho por um mais sofisticado. Isso é o de menos. O que
pega aí é o que essa permuta inocente e antenada com a visão de mundo moderno
representa: o símbolo perdido. A subserviência ao novo que, como um trator,
passa por tudo o que é velho mas que foi bom e que continua sendo, que tem o
seu charme, e que um dia foi importante na vida de muita gente. Que digam os
motorrádios, as vitrolas, as remingtons, as facits, as fitas cassetes, os
vinis...
Minha corrida ficou mais triste.
Lembrei-me de como é broxante para mim a imagem do povo no estádio assistindo
ao jogo com a televisãozinha na mão, vendo sua imagem correr as telas. O cara
faz pose e quando vai avisar o amigo a câmera se esquece dele.
Pelamordedeus!
Marcão, você não, meu amigo!