sábado, 27 de julho de 2013

Contrapontos

O rio Perequê-Açu fede, mas Paraty é uma festa. O formigueiro sobre a ponte avisa que a cidade bomba. Milhares de pessoinhas interessadas em literatura, penso, e no oba-oba. Ainda na Beira Rio, dou de cara com o Frei Betto saindo de um hotel. Atravessamos a ponte e começamos a flanar.

Desta vez estava em Paraty a passeio. Sem ingressos para as mesas, preferi misturar-me à efervescência multicultural de artistas desconhecidos, à gastronomia exótica e cara, às paisagens naturais belíssimas da cidade das pedras, tipo rio Perequê-Açu.

Embora as manifestações culturais fossem múltiplas, é a literatura a protagonista da festa. O livro, companheiro sem igual para todas as horas, é vendido na livraria, mas também em ruas e praças por escritores desconhecidos, que não têm vergonha de oferecer seus trabalhos a quem passa.

Pena que a maioria das pessoas ainda não tenha descoberto o universo vasto e riquíssimo que é um livro. Digo os brasileiros, obviamente. Outros povos, até nossos vizinhos sul-americanos, dão de goleada na brasilidade. Em termos de leitura, o brasileiro é uma lástima.

Todo mundo tem um som em casa, tem CD de pagode, de samba, de funk... Mas não tem livros. Uma pequena biblioteca que seja. Tem um ou outro empoeirado na estante, enciclopédias velhas, a Bíblia. O brasileiro não cultiva o hábito de ler e comprar livros, de visitar livrarias, ou comprar pela internet mesmo. E não venha dizer que é o preço, porque CD e livro, os preços batem.

Outra coisa: as pessoas andam sem paciência. Vivem a vida a mil por hora e só de pensar em sentar num lugar confortável e abrir um livro, pequeno que seja, começam a ter calafrios. Que pena...

Na livraria lotada da festa, sem espaço para andar, encontro o Milton Hatoum folheando alguma coisa. Ai, se eu tivesse com o “Dois Irmãos” debaixo do braço. Não leu? Tá aí uma boa dica.

No meio da ponte um grupo de manifestantes se junta à festa. “A cidade do livro não tem biblioteca!”. “Isso aqui é só fachada. Acorda Brasil!”. São cartazes, gritos de ordem, batucada. A polícia de butuca, só olhando. Cadê o Frei Betto?, me pergunto. Sem querer, engrosso o movimento.
No sol poente da Beira Rio, do outro lado do rio, vejo alguns homens bebendo, dançando uma música, alheios a tudo que acontece na cidade.

sábado, 20 de julho de 2013

Nos braços de Ariella

Meus amigos Jota Castilho, Edgard Fernando Cicino de Lara e Guilherme Bitencourt estão até agora tentando compreender o que aconteceu. O veneno era poderoso, e se todos ainda conseguem ver a luz do dia, se eu estou aqui, vivinho, em condições de escrever, foi porque recebemos um atendimento rápido e eficiente.
Lembro-me que me acordei com uma sequência de tapinhas na face, pensando estar mergulhado num sonho oriental. O ataque foi tão cruel, que a sinuosidade da serpente azul até agora provoca sustos e calafrios naqueles que queriam apenas se divertir.
Tudo começou muito estranho, com uma nuvem branca cobrindo a cidade. Questionávamos se seria um nevoeiro denso - incomum num final de tarde -, ou apenas poluição, tão fácil de enxergar num céu de São Paulo em tempos invernais.
Estávamos sentados no chão, até então distraídos, conversando, bebendo, contando piadas de sacanagem, tratando a noite como mais uma em centenas de dezenas de noites, em que saborear o aconchego das amizades, do riso leve, da vida descompromissada, é o que existe de mais importante.
O primeiro e sorrateiro ataque aconteceu por volta das onze, e nós nem nos demos conta. Depois, num papo de bar, regado a vinhos e chás, quando os efeitos do veneno começavam a nos deixar sonolentos, percebemos que todos tinham, na medial da coxa esquerda, uma ferida aberta.
Naquele momento, concluímos o óbvio: tínhamos sido atacados, e aí, meu amigo, já era tarde. O efeito não demorou, e mesmo embaralhada por densa camada de névoa, ou poluição, sei lá, a consciência percebeu a armadilha: havíamos sido fisgados, sem dó nem piedade, pela beleza exótica de Ariella.
Ainda que pudéssemos imaginar o tamanho dos riscos que corríamos, a beleza da serpente, que ondulava pelo assoalho, era tão envolvente, que simplesmente fez com que perdêssemos a noção do perigo. Ali não era a cobra venenosa que rastejava, e que vibrava e que impactava; ali era simplesmente Ariella, com seus inimagináveis tons de azul, que numa hora eram de um brilho visceral, noutra, de um opaco gritante (que fazia destacar o couro branco). Mesmo porque, quem imaginaria que nas imediações da Vila Mariana, fosse existir beleza tão exótica quanto perigosa?
Acho que fomos robotizados. A partir daquele momento não estavam mais ali o Jota, o Fernando, o Gui, o Sergio. Viramos zumbis. Estávamos a serviço da ardilosa serpente, que com seus jeitos e trejeitos, movimentos que iam e vinham, que subiam e desciam, nos encantava de tal forma que enxergávamos - ah, e todos enxergaram - um sorriso caliente nos dizendo o que fazer (como se cobra sorrisse!).
A sedução foi tamanha, meu amigo, que repetimos a dose. Sem titubear, entregamos a medial da coxa direita para ela. Ali, não importava mais nada. Só queríamos saber de nos jogar nos braços flutuantes de Ariella.
Mas sobrevivemos.

sábado, 13 de julho de 2013

Deus salve a química

Dar uma tesourada no cabelo é uma coisa que me deixa leve. Não deveria, afinal, eles minguam precocemente, e, aqueles deixados pelo chão, em nada contribuem para diminuir os numerozinhos da balança. Mas você me entende, caro amigo, claro que entende. Falo da inconfundível leveza do ser.
Ainda que sejam poucos, e mantidos obstinadamente, muitos por conta de um tal de Finasterida (e sem efeitos colaterais, entende?!), a passada da tesoura me renova a alma.
Dá vontade de sair, de comer fora, de pegar um cineminha, uma visita à livraria ou saborear o nhoque à gorgonzola lá no Tio Giuseppe, em Bentão do Sapucaí.
Se isso é femininamente viral e pega, eu não sei; só sei que hoje é sábado, está chovendo, e eu vou cortar a franja, ah, vou!
Enquanto espero a minha vez, vejo o cabelo da mocinha sendo comido por uma boca de jacaré. A cada mordida, uma fumaça, uma densa fumaça. Deus me livre... Deve ser a tal da chapinha, penso. O cabelo vai sendo progressivamente chapado. Bêbado, pode ser levado para qualquer lugar. E pensar que as pessoas pagam por isso. Só pra chegar ao tal padrão de beleza definido pela sociedade. Sei não...
Ao mesmo tempo em que uma engenhoquinha barulhenta começa a trabalhar na minha cabeça, escuto uma senhora reclamar dos protestos das ruas: “é muita anarquia. Você viu naquela cidade — acho que foi Belo Horizonte —, a bagunça que eles fizeram?” A outra se mostra inconformada: “isso é coisa de desocupado!”.
De fato, os protestos tomam conta das cidades. O povo nas ruas se rebela, e o mais importante: descobre a força que tem.
“Mas vocês viram o que os protestos alcançaram?”
Elas me olham assustadas.
“Olha quanta coisa aconteceu depois que esses jovens saíram às ruas! É de tirar o chapéu. Os políticos estão vendo que não dá mais pra fazer o que bem entendem.”
Elas não respondem. Fazem uma cara de não sei. Uma delas insiste em dizer que é só anarquia. Mas diz pra amiga, não pra mim. Mania que eu tenho de me meter na conversa dos outros...
Depois do corte, a cabeleireira prepara os apetrechos. Olho no espelho e vejo a cabeça nova, quase toda branca; uma cabeça, digamos, invernal. Não dos trópicos, é claro, mas dos Alpes. Ou de Amsterdam. Que nome bonito: Amsterdam.
Penso na mocinha, no padrão de beleza definido pela sociedade e, juro, juro mesmo, que foi por um triz. Só não desisti depois que fui tomado pela imagem da mulher loira e chique, toda modernosa e jovial, com seu avô setentão a tiracolo.
“Vamos lá, então?”, me indaga a cabeleireira.
Eu acordo.
“Deus salve a química!”
“Hã?”
“Vamos... he, he, he! Vamos…”

Comunicado

O autor informa que suas crônicas estão sendo publicadas com exclusividade na página Crônica do Dia ( www.cronicadodia.com.br ). Convida...