sábado, 29 de março de 2014

Patologias urbanas

Restaurante de comida caseira. Mario Sérgio Cortella, numa palestra: “Famílias inteiras saem de casa no domingo para comer comida caseira no restaurante por quilo.”

Valentina. Leiloaram a virgindade da Valentina. A notícia dizia que o ganhador teria direito a uma noite em suíte presidencial num motel de São Paulo, jantar especial à luz de velas com direito a champanhe francês, banho aromático com pétalas de rosas, lingeries especiais para a ruiva e uma câmera digital para filmar e mostrar aos amigos. Só que Valentina não é uma mulher gostosa. É uma boneca inflável, a mais realista das bonecas infláveis. Pele feita de cyberskin, um material muito próximo da textura da pele humana, cabelo tratado fio por fio e lavado com xampu, 1,65 de altura, olhos verdes, lábios carnudos, seios fartos, cintura fina, pelos pubianos, unhas, dentes e peso de mulher humana.

Celular. Entro no elevador e ela está concentrada no celular. Não me olha na cara. Não responde ao meu bom dia. O celular. Está mais interessante. Só tira os olhos da telinha para apertar o quatro. Eu aperto o três. Vamos subindo. Em silêncio. Nem tento puxar conversa, falar sobre o tempo, nada. Quando o elevador para no três ela sai apressada. “Este é o terceiro andar. O seu é o quarto.” Ela volta sem tirar os olhos da telinha. Não me diz obrigado, bom dia, bom trabalho, nada. Neste mesmo dia, saindo pra almoçar, noto em menos de um minuto: um sujeito atravessando a rua, falando ao celular; a mocinha de cabelo cor de abóbora vindo na minha direção (tenho que desviar, senão colidimos) com os olhos vidrados no celular; no quilo, a moça não sabe se almoça ou se digita no celular. Já vi Paulinha na companhia de Augusto, só que falando o tempo todo não com o Augusto, mas com a Marcinha no celular. Já vi Paulinha na companhia de Marcinha, só que falando o tempo todo não com a Marcinha, mas com o Augusto no celular.
Morte estúpida (I). No esquife, colocado no centro da sala escura, jaz serenamente um sujeito velho, cabelos brancos, rugas no rosto, e um semblante de boa gente. Ao redor, pessoas choram e sentem aquela partida inesperada. Duas mulheres – as filhas, não se conformam, e tentam a todo custo, manejando delicados lenços de cambraia, estancar a água salgada que cai dos olhos. Algumas criancinhas — as netas — choram amparadas pela avó, que de todos, parece a mais forte.

Morte estúpida (II). Ele se esquece de acionar a seta ao estacionar. Um sujeito de moto que estava atrás começa a xingá-lo usando todo o seu repertório de palavrões. Por mais que esteja errado, ninguém gosta de ser xingado em via pública. Apesar da idade e da pouca força, ele desce do carro e responde à altura. Depois de xingamentos mútuos, o sujeito grandalhão joga o capacete com raiva, empurra seu desafeto que cai e dispara à queima-roupa.

Morte estúpida (III). A polícia derruba a porta velha e encontra a família reunida. A mulher, uma mulata gorda, chora abraçada ao marido e aos seus dois filhos. Os policiais não entendem a cena. Olham ao redor: uma cozinha ordinária, fogão, geladeira, pia, armários, mesa e cadeiras. Tudo bem arrumado. O homem, após beijar a mulher e as crianças, levanta as mãos para cima e não oferece resistência. Na calçada, os policiais ainda ouvem o choro das crianças chamando pelo pai.


P.S.: Espero vocês, meus amigos, no próximo dia 10/04, a partir das 6 da tarde, na Livraria Nobel do Via Vale Garden Shopping,  em Taubaté, onde estarei autografando o livro “Confidências de um sacerdote”, meu primeiro romance. Até lá!


 

 

sábado, 22 de março de 2014

Ressaca

A companheira mais fiel do carnaval é a ressaca. Você pode experimentá-la muitas vezes, trilhões de vezes, em qualquer estação do ano, faça chuva, faça sol, em Paris ou Paraibuna, goste ou não de carnaval. Mas se você gosta da festa, é batata. Ressaca sem carnaval é muito comum. Carnaval sem ressaca não existe. A menos que você seja um desses cordeirinhos que mergulham suas almas num retiro espiritual (carnaval saudável, longe das tentações mundanas). Vixe...
Terça de carnaval lesa. Ressaca das brabas. Nada que apague as lembranças da festinha noite anterior na casa do Z.M. e da R. De repente, estávamos revivendo nossos corpos suando a cântaros no Xirê Xirê do Anhembi. De repente, estávamos ladeando o capelão do padre Marcelo. Confesso que olhando aquilo derrapei numa imagem tosca, mareada, bem diferente daquela imagem de moço fininho que apareceu em rede nacional atraindo centenas de fiéis e que não precisava de alface e hambúrgueres para ser. No rádio do carro, o samba ia correndo e o refrão se cristalizava em nossas mentes loucas por uma passarela. Z.M. ia me mostrando tudo e quando dei por mim, ele já estacionava o carro: “Pronto. A quadra é ali!”.
Grajaú. Tínhamos que encontrar um certo V. Três fantasias. As nossas. O nosso passaporte. “É um cara alto. De chapéu branco”. A informação não ajudava muito. Naquele Grajaú respirando carnaval, não faltavam homens altos com chapéu branco na cabeça. V. encontrado, a surpresa: “Poxa! Onde vou arrumar três fantasias agora?”.
Já antevendo vinagrar uma festa que nem bem nascia em nossas mentes, e moribunda, já tomava assento na UTI, Z.M. deu a última cartada: “Vou ligar pra S.” Explico. Pelo que entendi do imbróglio a situação era essa: como faz todos os anos, Z.M. havia combinado com S., pegaria as fantasias como sempre, e tava tudo certo. Mas na última hora, S. saiu da escola e passou uma lista para V. com o nome de alguns integrantes da ala. Isso de fato aconteceu. No entanto, segundo V., a lista chegou tarde. Eu tava adorando aquilo. Preocupação? Nenhuma! Medo de ficar sem carnaval? Nadinha. No fundo eu sabia que naquela madrugada de domingo pra segunda, nossos pés estariam no Anhembi de qualquer jeito, nem que fossem na ala das baianas. Na verdade, eu gostava de estar ali, a vibração pulsante da brasilidade, o repique do tambor ao sabor de uma coca com pinga.
Lembrando a história com os demais comensais, peguei mais cerveja, um pedaço de cuscuz da R. que estava um luxo, e P.R. veio com essa: “Seu Zizinho mandou não mexer na jabuticabeira. Ele fez um trato com a gente: ninguém rouba as jabuticabas; ele dá uma parte pra gente. Chamei os camaradas: ‘Olha aqui, ninguém mexe nas jabuticabas do seu Zizinho. Quando ele for apanhar, ele vai dar uma parte pra nós’. Seu Zizinho pelou a jabuticabeira e nós não vimos umazinha sequer. Quando encontrei com ele, eu cobrei: ‘Poxa, seu Zizinho, cadê a nossa parte?’. Ele veio com grosseria: ‘Você acha que eu vou dar jabuticaba pra essa molecada de rua? Eu tenho filhos! Eu dou pros meus filhos! Vocês são um bando de vagabundos!”. P.R. arrematou: “Sergio, eu naquela época, apesar da pouca idade, era um menino justo. É assim? Tá. Tudo bem. Reuni a rapaziada. Peguei o serrote do vô. De madrugada, pusemos abaixo a jabuticabeira do seu Zizinho.”
Minha cabeça dói... Ah, preciso de um analgésico...

sábado, 15 de março de 2014

Confidências - Lançamento

Marcamos. Ufa! Dia. Hora. Local. Só falta você. Sim, meu amigos! A presença de vocês. Comigo. Dividindo esse momento especial. Único. Espero todos lá. Dia 10/04, a partir das 6 da tarde. Na Nobel, do Via Vale. E me ajudem. Compartilhem. Divulguem. Convidem. Valeu!!! 





P.S.: volto com as crônicas na próxima semana.

sábado, 8 de março de 2014

OSESP e otras pequenas cosas

Noite dessas, sem me importar com a chuva rala, fui ver o Robertão Tibiriçá e sua trupe na dispersão da Walter Thaumaturgo. Trata-se de um projeto do Governo do Estado de São Paulo intitulado “OSESP Itinerante”, que pretende levar música clássica ao interior do Estado, em comemoração aos 60 anos da orquestra. Numa bem montada concha acústica o regente comandou seus músicos, que passearam pela Sinfonia nº 5 em dó menor, op.67, 1º e 4º movimentos, de Beethoven; Ruslan e Ludmila: Abertura 5' de Glinka; Romeu e Julieta - Abertura-fantasia de Tchaikovsky.
Mas não quero falar desse espetáculo aí. Não! O espetáculo do Robertão? Não! Sua orquestra dispensa comentários. Seria chover no molhado, e já basta a chuva que caiu. Vou falar de otras pequenas cosas que ninguém viu. Mas eu vi.
Quando cheguei, estranhei a demarcação que fixava a fronteira entre a ralé sem privilégios (na qual me incluo) e os poucos, pouquíssimos vipérrimos que poderiam assistir ao espetáculo sentados confortavelmente de frente ao palco. Pensei: “Poxa! Até num espetáculo popular, patrocinado pelo Poder Público, há divisão entre as classes?”. Já deveria ter imaginado a mimosa separação, quando ainda pelo caminho, me deparei com um jovem senhor carregando sua almofadinha, já ciente de que o espetáculo seria visto em pé. “Ué? Almofadinha pra quê?”. No entanto, parece que os vips se assustaram com a chuvinha, e sete da noite eram 10 cadeiras vazias por uma ocupada, obrigando os organizadores a abrir espaço ao povão. Mas não é disso que quero falar. Há cositas mais interessantes que esses pormenores insípidos.
O guarda-chuva, por exemplo. Ah, o velho guarda-chuva, que Pratinha tão bem retratou em sua B&C. Mas não resisto, com a permissão do jovem mestre. Cumpriu bem a sua missão, o dengoso. Protegeu chapinhas e escovas, carcaças e adiposidades. Não foi fácil. Houve duelos interessantes, mais que violinos e violoncelos, harpas e flautas, pratos e castanholas. Havia as sombrinhas, coitadas; franzinas, delicadas, que não se atreviam a desafiar o poderoso varão. Eles, maiorais, ocupavam todo o pedaço, e não davam mole às picorruchas. Só não imaginavam encontrar pela frente uma ou outra plus size feminista defendendo a classe. Aí foi covardia. No meu canto, defronte à gradinha de segregação, via tudo com um sorriso de escárnio; assistia aos duelos com ligeiro interesse, mal sabendo que num lampejo, era o meu, já velhinho e cansado, quem era levado à lona por um Anderson Silva das varetas musculosas. Eu, hein?
Mas guerra mesmo não se deu só na etnia guarda-chuvana. Foi além, muito além. Entre classes, eu quero dizer. Foi o que ocorreu quando os seguranças abriram a portinhola, o que permitiu o acesso dos varões e das picorruchas a um território até então dominado pela trincheira inimiga: as capas plásticas. O proletário avançou sobre a burguesia, a esquerda atropelou a direita, a elite foi engolida pelas massas. O que vi foi muita capinha desistindo de tudo, ignorando os dois telões de imagem digital, e pegando o caminho de casa, achando que o mundo é injusto.
No final, perderam de ver Tibiça fazer dançar gregos e troianos, num espetáculo cultural com a dimensão da generosidade do simpático maestro e sua trupe.


sábado, 1 de março de 2014

Vida

Olhai os lírios do campo. Nem que seja por um segundo. Pense no tempo, sinta o vento. Uma música ao longe? A música é vida, vida é música. Sua doce vida, baby, que pede um lugar ao sol. Olhai os lírios do campo, senão, noite.
Nem que seja um pouquinho. Um pouquinho só. Eu sei que não tens tempo. É correria bruta, absurda, colossal. Mas quem não acha tempo para um simples lírio não pode ser feliz. E vida sem felicidade... Acorde, doce Clarissa! A vida passa como um raio cortando o céu, como um incidente, com a chuva de verão. E de repente, sol. E a vida? Noite.
Não se trata de simples aventuras provisórias, faça-me o favor, senhor Juliano! De jeito nenhum! A vida é muito mais que isso. Não pode haver lugar para o provisório, o limitante, o parcial, o mais ou menos. Vida mais ou menos? Nunca! O que pensas que sou? O bom filho eterno? Ora, nem queira saber. A ultrapassagem daquela linha tênue que nos separava sacudiu os fantasmas da infância. Um trapo. Mas feliz, ah, feliz! Feliz por se dar conta que isso é vida. Uma azeitona preta carnuda pronta pra ser devorada. Ah, doce vida! O fotógrafo? Pode registrar.
Nem Helena nem Iaiá. Nem ninguém. Ninguém pode ajudar. Não há definições, conceitos, mergulhos, viagens possíveis no vasto e limitado repertório humano. Nas profundezas do ser? Talvez. Talvez ali você encontre algo. Na cartomante muitos já tentaram. Mas brincar com fogo talvez seja menos perigoso que tentar entendê-la. A ressurreição pode tê-la restaurado, mas ainda assim, desconhecemos o que ela significa. Sem entender. O que é você? Responda? Eu prefiro seguir com a igreja do diabo. Quem sabe?
Sou homem comum. Um homem comum que tenta responder às perguntas universais que não calam. Indignação! Indignação, sim, por não encontrar palavras, por não conseguir elaborar frases, por não conseguir romper a superficialidade para encontrar algum sentido que possa responder à pergunta prosaica feita com olhos de insatisfação. O avesso pode ser um bom começo. O avesso da vida? A morte. Mas isso só pode ser um complô! Um complô contra mim e contra a América! Como a morte, um fantasma que sai de cena, ou entra, vem como um animal agonizante colocar suas garras num patrimônio de vida, que só quer falar de vida, que só quer entender de vida?
Mas vida não se entende. Desonra nenhuma, meu senhor, desonra nenhuma. Não, não se entende. Ainda assim, patino na teimosia. Como só Elizabeth Costello poderia fazer. Sim, sim, sigo minha árdua tarefa, ainda que seja homem comum e homem lento, ainda que desprovido do conhecimento da mais fina filosofia, ainda que na infância e na juventude tenha sido um insipiente, insignificante e ignaro sobrevivente. E só. Mais nada. Talvez devêssemos bisbilhotar a vida dos animais. Sim, sim, dos animais. Esses seres tidos por nós, brilhantes e inteligentes humanos, como irracionais. A vida no avesso. Puts! Na irracionalidade? Que irracionalidade? Onde?
A missão é quase insana. Nem usando parte de um universo pensante ela se desnuda em carne. Nem com as mãos lisas agarradas em Érico, Tezza, Machado, Roth, Coetezee. Oh, Abu! Sua pergunta não cala, mas as respostas se escondem no oceano negro do desconhecido. A vida é isso. Desconhecimento em estado bruto. Mas linda. 

 

Comunicado

O autor informa que suas crônicas estão sendo publicadas com exclusividade na página Crônica do Dia ( www.cronicadodia.com.br ). Convida...