sábado, 23 de novembro de 2013

Multifocando

O César falou que via a estrada se mexendo. Pro Gustavo, o mais irritante era colocar os pés no chão. Cadê o chão? Sem “chãonce”. “O pé vai, vai, vai” ele disse, “e nada”. Na visão do Gustavo, o chão chegava antes da hora. O Julio conseguiu ver a máquina copiadora respirando. Os movimentos de inspiração e expiração. Nítidos. A Berenice disse que sentia náuseas enquanto caminhava.
Eram essas as minhas referências ao chegar à ótica. A atendente veio e, depois de me tranquilizar, despejando um monte de informações técnicas, aconselhou-me a comprar a TAL lente. A boa. “Você vai se acostumar rapidinho. Com esta lente aqui.” A TAL.
Sempre usei óculos com lentes simples, ou monofocais. Era a primeira vez que me deparava com aquela situação: comprar uma armação que sustentasse lentes multifocais. O que me gerou um grande problema: as minhas preferidas, as armações pequenas, não eram adequadas para a multifocalização da vida. Em tais lentes, distribuem-se três campos de visão: o longe, o intermediário e o perto. A armação então tinha de ser um pouco maior. Depois, foi escolher a marca da lente: optar por uma marca desconhecida, mas também boa nas palavras da atendente – um boa meio com cara de mais ou menos — e mais barata, ou optar por uma mais cara, ótima – um ótima com acordes de violinos — e com adaptação e conforto em tempo recorde vindo como plus no pacote?
  Gostaria honestamente de cozinhar esse tal de multifocal. Mas já estava ficando ridículo, eu confesso. Minhas lentes eram para longe. E vivi muito bem com elas, mesmo pra perto. Só que de uma hora pra outra, deu pra embaçar as letrinhas do computador, dos livros, da bula de remédio, dos ingredientes dos produtos, e, para lê-las, eu tinha que tirar os óculos. Nada mais bisonha a cena: põe óculos, tira óculos, põe óculos, tira. Ave! Isso ofusca até a sua própria identidade. Imagina: uma hora de óculos, outra, sem. Porra, o cara não se decide? Quem é esse Sergio, afinal? Um homem de mil máscaras? Com certeza, querido. Eu, você, e milhões de terráqueos espalhados pelo planeta, mas isso é muito filosófico para uma simples crônica que somente quer tratar de lentes multifocais.
A verdade é que cá estou, neste dia que está apenas começando, um solzinho já entrando pela janela, o pessoal chegando pro trabalho, e eu com esse negocinho na mão, maior do que eu gostaria, com lentes mais grossas do que eu imaginava, pensando se ponho ou se não ponho. Confesso que estou me sentindo estranho. Não sei explicar. Parece que estou deixando pra trás uma época, e começando outra. Uma mudança de época. É isso.
Mais que um mundo em três dimensões, parece que a vida ganha cores novas. Tudo mais limpo, mais nítido, mais claro. Não porque o branco-neve está tomando os pelos dos meus braços. Esses pelinhos aqui? Nada! Já fez isso no cabelo, na barba, no peito, nos pentelhos, eu nem ligo mais. A sensação é muito diferente. Parece nascer uma espécie de autoria ainda um tanto quanto rudimentar nas dimensões da vida. Em que perto e intermediário são superados pelo distante. Ele traz um pacote de mercadorias que em tempos de consumismo escravo, demandam vista boa, ainda que, à base de lentes corretivas.
Sem filosofismos, vai: deixa ver se essa máquina copiadora respira mesmo.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

A menina e o avô

Taubaté. Praça Santa Teresinha. Domingo. Oito e dez da manhã. Primeiro dia do horário de verão. Ela desce do carro animada. Estava no banco de trás. É graciosa, branquinha, bonita, cabelos lisos, castanhos, bem-tratados. Uns seis anos? Ele, sem a mesma animação, desce com dificuldade, a idade pesa. Os poucos cabelos que lhe restam são brancos, finos, como branco também é o seu bigode estilo Felipão. Fecha a porta. Engancha seu braço no braço da menina, como se fossem um casal, um casal amoroso, de amor maduro, sereno.

“Vovô, vamos apostar corrida?”
“He, he, he! Corrida? O vovô tá velho pra correr, filhinha! Vamos fazer o seguinte: o vovô senta naquele banco, e você, se quiser, corre, eu fico olhando.”
Ela, solidária, prefere a companhia do vovô. Juntos, sentam num banquinho assombreado.
“Vovô, conta uma história?”
“Uma história? Ah, história o vovô consegue contar! Deixa ver...”
Ele fica pensativo por alguns instantes, parece repassar mentalmente a história toda antes de começar. Organiza começo, meio e fim, talvez. E algum sentido; afinal, a netinha é esperta. Faz um carinho nela. Começa:
“Era uma vez uma menina chamada Ana. Ana gostava muito dos seus livros. Quando deitava para ler, experimentava uma sensação diferente, que ela não sabia dizer o que era. Ela só sabia que aquela sensação era muito gostosa e que ela queria que não acabasse nunca. Um belo dia, Ana estava lendo um de seus livros preferidos, que contava a história de um bruxinho chamado Harry”.
“É o Harry Potter, vovô?”
“Potter? Acho que sim! Se não me falha a memória, era Potter o sobrenome dele sim. Harry Potter! Mas então, Ana estava lendo no seu quarto, como fazia todos os dias, quando ouviu um barulho vindo de fora de sua casa. De repente, pela janela do quarto de sua mãe ela avistou um bruxinho de óculos, que veio lhe trazer um presente. Ele disse: ‘Olá, Ana! Trouxe pra você este livro de presente. Ele é simples, pequeno, são poucas páginas, mas ele vai te oferecer um tesouro, que muita gente procura, mas poucos encontram. Sempre que você se sentir tristinha, infeliz por algum motivo, abra este livro.’ E foi embora. A primeira vez que Ana se sentiu tristinha por não ter conseguido tirar uma nota boa na escola, ela abriu o livro. E o que foi que ela viu? Um desenho. Era uma praça bonita, um dia de sol, passarinhos na copa das árvores, ela, seu pai, sua mãe e o irmãozinho brincando de corrida. E Ana se sentiu feliz”.
Acho que foi mais ou menos assim. Admito que fiquei bisbilhotando conversa alheia. Meu alongamento demorou mais do que o costume, mas aquela cena me envolveu de forma tão profunda, que eu tinha de esperar a história terminar. A menina ficou encantada. Se engancharam novamente e saíram conversando, como um casal amoroso, de amor maduro, sereno. Um momento de felicidade, pensei. Simples, como a representação do desenho da historinha do vovô. Terminei minha corrida, meu alongamento e fui embora mais leve, deixando que o vento desmanchasse o meu cabelo, o sol esquentasse o meu rosto, a música do rádio tomasse o meu espírito.

P.S.: excepcionalmente postado nesta sexta-feira

sábado, 9 de novembro de 2013

Do nada

“Não deixe o leite derramar...” Eu já ouvi muitas vezes esta frase. Mas agora ela simplesmente brotou. Brotou, assim do nada. Quando eu tava pensando no que esperar desse timinho que o Palmeiras tem, ela veio. Tomou conta.
Ferver um litro de leite é um teste de paciência. Não adianta olhar de minuto em minuto pra ver se já formou nata, se tá subindo, se tá na hora de desligar. Nessas horas, ele parece que quer brincar com você, testar o seu limite, porque passa um tempão e você olha pro fundo da leiteira, e ele tá lá, lisinho, lisinho, que nem bumbum de neném. Agora, deixe-o lá, deixe. Vá fazer outras coisas pra ganhar o dia. Passe manteiga no pão, esprema a laranja, coe o café, vá ao banheiro. Faça isso tudo, faça. Não mais que dois minutinhos e pronto.
Continuei pensando: se ambas as situações fossem colocadas à luz da ciência, se um técnico de um desses institutos que avaliam as qualidades de nossas máquinas lhe fizesse uma visitinha, a fim de testar a qualidade do seu fogo, e nesse teste usasse dentre outras, de uma leiteira cheia de leite, não tenho dúvida nenhuma em afirmar que suas medições comprovariam que o tempo gasto na fervura, considerando as duas situações, seria exatamente igual. Bom, então o problema não é do leite?
Talvez fosse interessante chamar um outro técnico a fim de examinar a máquina humana, para tentar descobrir o que se passa com ela. Não sei se seria uma boa ideia. Se ele fosse um profissional sério, talvez abandonasse a profissão ao mergulhar no mar de sombras que é esse tal de humano. Porém, como estamos trabalhando no mundo das hipóteses, dispenso, por ora, e com todo o respeito que ele deva merecer, o senhor técnico, e mesmo sem diploma, faço eu mesmo o diagnóstico.
A máquina sofre de uma síndrome muito comum que, embora não tenha galgado ainda o foco de preocupação da Organização Mundial da Saúde, dá mais que chuchu na cerca: a “síndrome do polvo”. Já ouviu falar? Não? O Homo sapiens não se contenta em fazer uma coisa de cada vez. Como tem muitos braços, quer fazer tudo o que pode, no limite de suas potencialidades, e ao mesmo tempo. E se acostumou com isso. Você acha que uma máquina dessas, acostumada a viver lá na frente, ou lá atrás, mas nunca no lugar em que realmente está, produto mal-acabado de uma sociedade desumana e doente, vai se render a uma simples leiteira, e perder dois minutinhos de seu precioso tempo, não fazendo nada?
Como não sou desse jeito, graças a Deus, agradeci mais uma vez ao Senhor por me dar de presente neste momento, uma leiteira pra pensar. Assim, do nada. Pelo menos tirei da cabeça esse timinho que ultimamente só me dá tristeza.
P.S.: esta crônica foi escrita após a derrota do Palmeiras para o Sport no primeiro turno do Campeonato Brasileiro da Série B. Quase foi apagada, considerando que depois daquele jogo o Palmeiras se recuperou e triturou os seus adversários. Foi um passeio, vai. Flanamos. E voltamos para o nosso lugar, de onde nunca deveríamos ter saído. Dá-lhe, Palestra!!!

sábado, 2 de novembro de 2013

Dilema

Fui diminuindo a velocidade pra ver se o sinal abria. Olhei pra mocinha de olhos amendoados, magrinha, loura, a pele branca castigada pelo sol, o suor lavando o rosto. Dignamente, fazendo o seu trabalho.
É por respeito a esses trabalhadores que ficam parados nos faróis, faça chuva, faça sol, que recebo os fôlderes com educação. No entanto, depois de alguns segundos, sem mesmo ler ou ver de que se tratam, deposito-os na sacolinha que fica pendurada no câmbio. Por fim, ao chegar em casa, ou no escritório, dou-lhes o devido destino: lixo.
Naquela manhã, porém, agi diferente. Como o sinal não abriu, abri o vidro do carro. Esperei por ela. Encarei-a com olhos de compaixão. Mas permaneci hirto, e fui firme: “Obrigado, meu bem. Não quero.” Ela não esboçou qualquer reação, talvez tenha levado muitos foras nessa vida de profissional dos fôlderes, talvez não tenha nem sentido. Simplesmente continuou sua labuta, e foi se achegar ao motorista de trás.
Mas eu senti, e aqueles olhos amendoados ocuparam meu pensamento por todo o final de semana. Havia nascido um dilema, e eu precisava resolver.
Honestamente, cansei de me ver entulhado de lixo todos os dias. Há cruzamentos em que não existe apenas uma lourinha de olhos amendoados, mas três ou quatro profissionais dos fôlderes, que me entregam dois, três, às vezes quatro papéis cada um. Como não tenho o menor interesse neles, tudo fica entulhado na bolsinha; depois, seguem para a lixeira. Nessa relação, eles fingem que fazem propaganda, e eu finjo que recebo. Outro dia a ficha caiu: “meu, para, vai! Para de enganação! Para de agir como um boneco condicionado”.
E isso é muito verdadeiro. Não tem sentido algum em receber um folheto para jogar no lixo. Tá certo que os costumes civilizatórios contemporâneos têm muito disso, de agir sem pensar, puro condicionamento, e eu estava sendo mais um boizinho na boiada. “Pô! Acorda, meu!”.
E foi assim que acordei. Ao ver a mocinha com um pacote de fôlderes na mão, na insegurança de meu primeiro não a essas criaturinhas dignas de Deus, eu tentei terceirizar a empreitada ao semáforo que me deixou na mão. Estufei o peito, olhei para a lourinha, e disse muito sem jeito: “Obrigado, meu bem. Não quero”.
Ah!, mas doeu. A impressão que me dava é que eu era um patrão despedindo um funcionário, mas sabedor de que aquele emprego, por mais simples que seja, era o máximo que ela tinha conseguido. E precisa dele. Precisa talvez pra sustentar sua filhinha, pra ajudar seus pais em casa, ou simplesmente para ter o que comer, um lugar pra morar, ou mesmo pra gastar na farra. O pensamento me desestabilizava e se multiplicava: “Sinto muito. A empresa está desativando o seu setor. Pode passar no departamento pessoal e acertar suas contas”.
Não. Isso não tá certo. A sociedade desumana precisa se humanizar, precisa oferecer meios de acesso ao conhecimento, precisa qualificar o conhecimento, precisa oferecer àquela trabalhadora simples e sem recursos, oportunidades para que ela possa estudar, fazer um curso, progredir. E precisa de lucidez para encontrar outras formas de fazer propaganda, mais limpa, menos custosa, parando de emporcalhar o ambiente com papel. Enquanto isso, ela vai continuar lá, a lourinha de olhos amendoados. Dignamente suando a camisa, fazendo o que pode.

Comunicado

O autor informa que suas crônicas estão sendo publicadas com exclusividade na página Crônica do Dia ( www.cronicadodia.com.br ). Convida...