sábado, 25 de janeiro de 2014

No mercado (III)

Como estava dizendo a semana passada, e a retrasada — se você não leu, ainda há tempo; veja neste blog; é só voltar — estava indo contente comprar o meu pastel quando um buraco indecente me derrubou. Tinha dificuldades para andar. Meu tornozelo estava inchado e sentia muita dor. Ouvi algumas pessoas pedindo para eu esperar, estavam telefonando para o serviço de resgate. “Em absoluto!”, eu intervim, “Em absoluto! Não foi nada! Estou bem! Não precisa de resgate de jeito nenhum!”
Larguei o tumulto ‒‒ não queria saber de hospital ‒‒, e segui resoluto em busca do meu pastel. Parei apenas por um minuto na tentativa de encontrar aqueles dois rapazes gentis que me ajudaram ‒‒ fazia questão de dar-lhes um pequeno agrado, mas eles sumiram no meio da multidão.
Enfim, no balcão.  Ao pastel, meus caros! Ao pastel! Uma beleza. Não há nada melhor que um pastel de feira. Massa branquinha e leve, carne com tempero que lembra o tempero da vó, mas isso eu já disse e não vou voltar em colóquios. Aproveitei também pra tomar uma bela de uma laranjada gelada. Pança cheia, alma lavada. Gozei o pensamento de retornar feliz para o aconchego do lar, para o banho quente, para os jornais. No entanto, fui surpreendido por um novo incidente.
Pus a mão com gosto nas nádegas macilentas, com a mesma volúpia com que se agarram as nádegas do desejo, e não encontrei a quietinha, a intocável, aquela que guardava a minha identificação como homem e cidadão, e os meus reais, parcos reais, é verdade, mas que eram meus e que ganhei na honestidade. A gentileza tem seu preço. Os gentis rapazes se aproveitaram do meu descuido, e me surrupiaram a carteira. Quem vai dizer que não foram os mesmos que surrupiaram a carteira daquela agitada mulher. E logo eu que não costumo me enganar com as pessoas, que vi uma gentileza fina naqueles dois. Depois de anos e anos, eu me enganava.
Não fui pro hospital descascar a cebola, nem pro aconchego do lar mergulhar-me num banho quente. Encerrei minha manhã num triste e escuro balcão de delegacia, onde não tinha pastel nem laranjada, mas um sujeito sossegado, que levava horas para datilografar uma simples folha de papel.

Dois dias depois recebi em casa a carteira com todos os documentos, e concluí que não tinha me enganado tanto assim. Eles eram gentis, embora batedores de carteira. Meu pobre dinheirinho voou, virou fumaça, mas os documentos de cidadão estavam lá, intactos, e arrumados. Delicadamente arrumados.

Mas deixa isso pra lá. Voltemos ao impasse, que é o que interessa. Como disse no início destas linhas, lá na parte 1, sou bastante chato nesse assunto de crônica, e se é pra decidir, então tá, eu decido: fico com meu anjinho de candura. Só escrevo o que vejo, o que observo, o que sinto, o que esses olhos que um dia a terra haverá de comer, testemunham ‒‒ o diabinho me pisca o olho. Assim sendo e, com todo respeito a você, meu amável leitor, digo que por enquanto, não há assunto para crônica sobre o mercado. E tenho dito! —  o diabinho me dá outra piscadela, e um sorriso maroto.

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

O Símbolo Perdido

No final do ano passado a minha crônica “O Símbolo Perdido” ficou em quinto lugar no Concurso de Crônicas da Afpesp. Em breve ela estará aqui no blog. Por ora, um aperitivo.
É com enorme pesar que comunico aos senhores e senhoras leitores: meu amigo Marcão, tão avesso às coisas novas desse mundo, tão resistente à profusão de tecnologia que brota como capim nas lojas e centros das catedrais do consumo, num rompante de pura contradição, cujas causas desconheço, mas que serão objeto de investigação oportuna, disse não ao seu velho e bom companheiro, para sucumbir às tentações do novo mundo.
Não parei de correr para não perder o ritmo, mas como sempre ele estava lá, na mesma praça, no mesmo banco, as mesmas flores, o mesmo jardim. Confesso que demorei alguns segundos para decifrar o mistério. Quando caiu a ficha, senti o coração apertar: cadê o seu companheiro? E num piscar de olhos, a imagem tomou conta da tela, fazendo inundar a visão com o pequeno orifício de seu orelhão (Marcão sempre foi orelhudo), e eu notei, flanando quase imperceptível, os fios, finos e frios, de um minúsculo fone de ouvido. 





sábado, 18 de janeiro de 2014

No mercado (II)

Como estava dizendo a semana passada (post anterior), o pastel do mercado, além de ser muito bom, me evoca os domingos na casa da minha avó. Antigamente, almoço de domingo era na casa da avó. Iam todos. Tios, primos, apareciam amigos e era uma festa. As brincadeiras, o bate-boca que tinha aos montes, o truco, a alegria de uma casa movimentada. Minha avó recebia a todos com genuína alegria. Ela mesma cozinhava, e seu tempero era único.
Mas voltando ao mercado, andar por lá em dia de domingo não é uma tarefa das mais aprazíveis. É uma aventura. Lembra do primeiro parágrafo desta crônica? Pois é. Apaga. Nada daquilo sobrevive às imediações de um mercado municipal em dia de domingo. Fui de carro e tão logo cheguei ao finalzinho da Humaitá para fazer o retorno da Afonso Moreira, o trânsito parou. Os estacionamentos lotados. Percebi que a própria rua tinha virado um estacionamento. Motoristas discutindo. Criança chorando. Gente impaciente. Buzinas. Depois de aguentar tudo isso, de convencer o proprietário do estacionamento onde costumeiramente paro o meu carro a me deixar entrar ‒‒ ele não queria me deixar entrar, aliás, não tinha como entrar, estava entupido!!! ‒‒, fui então encontrar o objeto daquele meu desejo inusitado: o famigerado pastel.
No caminho, um pequeno tumulto. Uma mulher berrava aos quatro ventos que tinha sido roubada. Estava chorando, pedindo ajuda. Uma rodinha de pessoas ao redor tentava ajudar. Perguntavam como era o ladrão. Ela dizia que nem tinha visto o sujeito. Quando percebeu, a bolsa estava aberta e a carteira tinha sumido. Outra mulher dizia que a gente devia tomar cuidado com a carteira. Que andar por ali era perigoso. Que ela já tinha sido roubada. Que a cunhada também. Que tinha de andar com a bolsa na frente. Que ali era pior que São Paulo. Automaticamente levei as mãos ao bolso de trás. Ela estava lá. Quietinha. Intocável. Pensei numa maneira de colocá-la pra frente, seguindo a cartilha da especialista em ações defensivas contra roubos e furtos. Não dava. Não tinha bolso na frente. Só atrás.
De repente, dois grandalhões fardados me interpelaram perguntando o que tinha acontecido. Falei rapidamente que a mulher tinha sido roubada. Eles abriram espaço no meio da rodinha e tentaram assumir o controle da situação. Ao pastel, então, amigos! Ao pastel! Não cheguei nem perto. Foi só andar uns poucos metros, tropecei num estúpido buraco e bati a cara no chão. Outra rodinha se formou. Agora, para socorrer o coitado que sozinho, tinha se esborrachado na calçada.
Não foi nada grave, vou logo dizendo. Não gaste seu tempo com preocupações. Senti que um dente se partiu. Meu tornozelo tinha virado uma cebola. Meu braço esquerdo ardia e sangrava um pouquinho por conta de alguns pequenos arranhões. Mas nada além disso. Estava consciente e sabia muito bem o que tinha acontecido. O buraco, eu apontei. Aquele desgraçado ali. Demonstrando grande gentileza, dois jovens rapazes me ajudaram, e eu, com um pouco de esforço ‒‒ confesso que estava meio zonzo ‒‒, consegui me aprumar na vertical. Tinha dificuldades para andar. Meu tornozelo estava inchado e eu sentia muita dor. Ouvi algumas pessoas pedindo para eu esperar, estavam telefonando para o serviço de resgate.
Perdão, meus queridos. Semana que vem ponho um ponto final nisso tudo.

 

sábado, 11 de janeiro de 2014

No mercado (I)

Sete horas da manhã, solzinho saindo, algumas pessoas indo para a igreja, pouca movimentação nas ruas de Taubaté. Nenhum estardalhaço, nenhuma confusão no trânsito, nenhuma buzina. Uma beleza de domingo.

Mas o leitor mais atento pode se perguntar se numa cidade como Taubaté o domingo não é sempre assim; e sou obrigado a responder, balançando afirmativamente a cabeça, que sim. O senhor está certo, meu amigo. Um ato falho de minha parte, digamos.  Domingo é o dia do silêncio, do recolhimento. O dia dedicado ao Senhor, para os crentes. Sinônimo de preguiça e ressaca para os laicos: dormir até o meio-dia, almoçar num restaurante, ver o futebol, tomar umas brejas. Somente os doidinhos como eu escolhem largar a cama tão cedo num domingo para fazer exercícios. Mas minha corrida na Santa é um ritual, e dele não abro mão.

Porém, hoje, esse ritual saudável que sempre termina com um banho quente, um suco natural de laranja, um livro nas mãos, foi maculado por um desejo intruso, que atende pelo nome de pastel. E não pode ser qualquer um: só aceito pastel de feira, que eu encontro no mercado.

Olha só ele aí, o mercado... É claro que o nosso mercadão daqui não tem o mesmo glamour do mercadão de lá, que até já serviu de locação para uma novela global, mas tem o seu charme. Confesso que sempre tive vontade de vê-lo, com suas maravilhosas frutas coloridas, com seu mosaico de produtos, com sua gente simpática, brilhando em uma de minhas crônicas. Mas, neste ponto, sou bastante chato. Escrevo o que observo, o que sinto, o que me toca, o que esses olhos curiosos testemunham. E, sinceramente, meus arquivos quadragenários não acusam nada de relevante que possa servir de mote para uma boa crônica.

O diabinho de lá me cutuca dizendo que a beleza de uma crônica não está nos grandes acontecimentos que, na maioria das vezes, são frívolos e desinteressantes, mas sim na miudeza sem valor, com o que hei de concordar. Porém, como disse, em matéria de princípio, fico com o anjinho de cá: sou chato, e se não encontro nada para escrever, não escrevo; mas, se quero escrever mesmo assim, tenho nas mãos não uma crônica, mas um impasse.

Enquanto este cronista metido a besta pensa no que fazer, se fica com o anjinho ou com o diabo (confesso que sou mais chegado a diabices), detalho para você, meu querido, que gasta seu tempo precioso lendo essas crônicas simples como pé de milho, a aventura que vivi por um pastel. Não sei se em sua cidade é assim, mas aqui em Taubaté, pastel igual ao do mercado eu não encontro não. A massa é clarinha e leve, a carne tem um tempero que lembra muito o tempero de minha avó. É que há sabores e sons que nos fazem sentir muito bem. Eu, por exemplo, quando mais jovem, gostava de dormir ouvindo uma fita do Roberto Carlos. Hoje, quando eu a escuto, me sinto muito bem, aciona alguma coisa lá dentro que me relaxa.

Mas o pastel do mercado, como dizia, além de ser muito bom, me evoca os domingos na casa da minha vó Lourença, lá na rua Professor Moreira. Antigamente, almoço de domingo era na casa da avó. E sobre isso e a aventura pitoresca que vivi pra comer um simples pastel, eu continuo semana que vem. Perdão, meu querido.

sábado, 4 de janeiro de 2014

Retrospectiva 2013

Reproduzo a crônica mais acessada neste blog, no ano de 2013: “Cracóvia, Varsóvia, Amsterdam...”, que foi postada no dia 12/10/2013. Aproveito para dizer que nos primeiros meses do ano (não tenho ainda a data), lançarei meu primeiro romance: “Confidências de um Sacerdote”. Você é meu convidado para a noite de lançamento. Oportunamente, voltarei com mais detalhes. Ah!, e semana que vem retornam as crônicas inéditas. Feliz 2014! Valeu!!!






Cracóvia, Varsóvia, Amsterdam..

Gosto de nomes de cidades. Alguns. Da sonoridade. Não sei até que ponto isso é relevante ou serve para alguma coisa. Deve ser tão importante quanto uma ferpa fina encravada na sola dura do meu pé. Mas você pode brincar com os sons modificando os significados, por exemplo; pode ler poesia explorando ritmos e sonoridade; pode até procurar cacófatos em títulos jornalísticos, olha que coisa interessante.
Baseado apenas no critério da sonoridade, o repertório de nomes de tudo quanto é tipo que chama a atenção apenas pelo timbre é grande. Há pessoas que gostam, por exemplo, de libélula, saudade, alameda, apodítica, sacrifício, guatemalteco, pirilampo. Tem gente que detesta zebu, espectro.
Mas o meu negócio é cidade. Nome de cidade. Não sei se a sonoridade do nome influencia em alguma coisa; de repente, alguma dimensão ainda não explorada pela física quântica; no índice de desenvolvimento humano (IDH), vai, ou na capacidade das cidades em proporcionar uma vida mais feliz aos seus moradores, com tempo para umas brejas, churrasco, mulher, futebol e cineminha.
Bacana é você associar o som da palavra a alguma coisa que lhe vem à mente. Veja bem, estou falando de uma imagem, e aqui não importa o significado do vocábulo. Ao contrário, quanto mais esdrúxula a imagem, melhor. Mais divertido. Mas não pode inventar. Tem que ser a imagem que vem, por mais chinfrim que seja.
Por exemplo: gosto do nome da cidade polonesa que irá receber a próxima Jornada Mundial da Juventude. Cracóvia. Nome sólido. A imagem que me vem é a de um estilete despedaçando um travesseiro de penas de ganso. Não sei por quê! E isso não importa, ô! O que importa é a imagem... Talvez ela venha viajando das profundezas de meu inconsciente pra me dizer alguma coisa.
Assim como Cracóvia, gosto de Varsóvia. Vejo algo maciço nele, de aço, com sustância. Varsóvia me lembra a noite, uma noite molhada, fria, com ruas mais parecendo espelhos de água, lâminas que se formam e passam a refletir o alaranjado das luzes; pessoas andando agasalhadas, ushanka na cabeça.
Ubatuba também me soa bem. Vejo a figura abolachada do João Bobo. Devem ser memórias infantis. Paraty. Almyr Klink. Um veleiro. Essa está maculada. Mariana é um nome doce. Vejo a minha avó sentadinha no sofá da sala, assistindo ao Silvio Santos e fazendo tricô.
Tenho um fetiche todo especial por Amsterdam. Amsterdam. Que bem me faz aos ouvidos. As imagens são muitas e multifacetadas. Um casaco de veludo. Jovens com livros nas mãos. Um sujeito rouco. Chocolate quente. A diferença de Amsterdam para os outros nomes é que ele me chama, me atrai. Como um magnete.
Não para comer steak com feijões, perambular de barco pelos canais, passear pelo Vondelpark de bicicleta, ver com os meus próprios olhos os desenhos de Anne Frank na parede de seu quarto, ou flanar livre, leve e solto pela Red Light District. Isso tudo eu já conheço. Sem desprezar as inúmeras justificativas esotéricas, viagem astral, fenômenos sobrenaturais ou o diabo a quatro, o que sei é que Amsterdam vive em mim. E eu nela. Faço sempre uma revisita. Uma viagem à essência da vida. Um déjà vu.


Comunicado

O autor informa que suas crônicas estão sendo publicadas com exclusividade na página Crônica do Dia ( www.cronicadodia.com.br ). Convida...