Minha mulher para o carro, me deseja bom dia, me
dá um beijo e vai. Fico na marginal da Dutra. Atravesso a rua e me instalo num
ponto de ônibus defronte à rodovia. O
concreto gela minha bunda, mas não me incomodo. Tá calor. Pego a agenda, dou
uma olhada, espero minha carona: o Eduardo.
À minha frente, o cemitério municipal. Pomposo.
Cinzento. Gozado isso. Todo cemitério que conheço é colorido. Túmulos de
múltiplas cores. Um mosaico. Em Taubaté, não. Em Taubaté, o cemitério é cinza.
Árvores frondosas e árvores secas. Algumas pessoas
caminhando por entre os túmulos. Um cachorro. Fecho a agenda. A imagem é mais
interessante.
Não consigo deixar de notar, à primeira vista, e
com certo escárnio, confesso, o texto esculpido no verdejante barranco ao lado
da rodovia, ao pé do cemitério (a imagem sobreposta dá a sensação de uma coisa
só), ressaltando o fato de Taubaté ser a capital nacional da literatura
infantil, obviamente por ser a cidade de nascimento de Monteiro Lobato. Um texto colocado ao pé do cemitério. Eta, falta
de imaginação desses politiqueiros!
Lobato não está enterrado lá. Até poderia, mas não
está. Algum desavisado pode fazer a associação. Não. Não tem nada a ver. Mas
outras associações até caberiam, não? A cidade morta lá em cima (o cemitério),
o Cidades Mortas, livro do Lobato, e, como não pensar também, a cidade morta
aqui embaixo, que a cada dia morre um pouco mais pelas mãos de políticos
desonestos e incompetentes. Pronto! Associação feita! A morte como elo. Bingo!
E é carro que vem. Carro que vai. Parece um jogo
de tênis. A bolinha pra lá. A bolinha pra cá.
Lembro-me que, quando criança, eu gostava de ficar
espiando pelos vãos das sepulturas, nas visitas que fazia acompanhado de minha
avó, ao túmulo de meus bisavós. Um costume, digamos, lúgubre. Lembro que era um
pouco escuro lá dentro; eu, na minha santa ingenuidade, tentava ver se tinha
movimento, qualquer movimento, alguma coisa do outro mundo, uma alma penada.
Fico pensando qual seria a minha reação se alguém
saísse lá de dentro no exato momento em que eu espiava. Não alma penada da
minha fantasia, isso não existe. O coveiro, por exemplo. De repente ele podia
estar dentro de um, ajeitando as coisas a mando da família, separando o saco de
ossos, abrindo lugar pra mais um infeliz. Eu mijaria nas calças, ah, mijaria!
E como esquecer a piadinha contada aos quatro
ventos pelo Monsenhor Antunes, grande amigo? Na mesa cheia de comida, ele
desfiava o repertório. E depois de tantas piadas e cervejas, ele vinha com
essa: “O avião caiu. Foram encontrados dez mil corpos.” Hã? Como? “Ele caiu
sobre um cemitério, he-he-he!”
Penso na calmaria que deve estar lá. Aqui é carro
que vem, carro que vai. Barulho de motor. Fumaça saindo pelos escapamentos.
Ventania. Um senhorzinho vendendo passe. O pai e o filho preocupados querendo
saber se o ônibus pra São José dos Campos já passou. O policial rodoviário
federal esperando a viatura, com uma arma de cabo amarelo de um lado, uma de
cabo preto do outro, falando ao celular, falando não, gritando! (o barulho dos
carros não o deixa ouvir a própria voz, então ele grita, grita sem parar).
Carros brigando para ver quem entra primeiro na rodovia. O estardalhaço normal
de começo de dia.
Mas lá não. Lá deve estar um marasmo só. Deve dar
para ouvir os passarinhos, a folha da árvore caída no chão sendo arrastada pelo
vento, um bate papo que vem de longe, sentir cheiro de flor.
Pensando bem... Prefiro este estardalhaço mesmo.
Apesar de tudo, aqui é bem melhor. Tem dias até que dá pra deitar o corpo numa
redinha instalada de frente para o mar, ao som das ondas, bebendo água de coco,
comendo camarão.
E é carro que vem, carro que vai.
Na minha frente o cinzento cemitério. A imagem é
insistente. Abro novamente a agenda, mas não consigo desligar. Em seus domínios
adormecem os restos mortais de boa parte de minha gente. Homens e mulheres
sadios, e gordos, e famintos, e risonhos. Gente que bebia, que comia, que
falava, que transava, que brigava, que se emocionava, que rezava, que vivia.
Nem quero saber o que sobrou deles.
Meu pai está lá. Não. Não está. Meu pai está aqui.
Comigo. Sempre esteve. Desde quando sua luz apagou. Lá está o que sobrou do seu
corpo. Matéria. Casca. Meu pai era muito mais que um corpo, que matéria, que
casca. Meu pai era a gema do ovo.
Às vezes me pergunto como vou encarar a morte.
Espero que com serenidade. É um fechar de olhos. Pronto. Acabou. Não dá pra
ficar pensando no resto, como as coisas vão ficar, se os filhos estão
encaminhados, se a mulher vai arrumar outro. E os meus projetos? Vou ter de
interromper todos? Etc., etc. Vou ter de interromper... Vão te interromper! Não
é você que aperta o botão da luz !
A morte é pior para quem fica. Que sofre a
ausência, a saudade. Pra quem vai é um sono. O que você sente quando dorme?
Pois é! Nada! É a morte! Um sono. Um sono sem sonhos (alguém já disse isso).
Minha carona chega. O Eduardo ao volante. A Tereza
ao lado.
Bom dia! Olho para trás e ele está lá. Cinzento.
Frio. E me encara novamente. Trocamos olhares. Seu olhar é muito parecido com o
olhar de quem tá dando mole. Confesso que nunca fui de desprezar uma flertada. Mas...
Neste caso... Sinto muito. Sou um homem comprometido. E fiel.
Acelera este carro, Edu!