sábado, 20 de dezembro de 2014

Convicções

Sou um homem sem convicções. A única certeza que tenho nesta vida, é que sou um homem desprovido de certezas. Não tenho certeza de nada. Ou tenho certeza apenas de que não tenho certezas. Me faltam convicções. As mais finas convicções. As grossas também. As de qualquer jeito. Finas. Grossas. Densas. Curtas. Me faltam convicções de todo o gênero. Sou um sem-convicções.

Ser um homem sem convicções é um problema muito sério, amigo. Seríssimo. A humanidade está fadada ao absoluto fracasso se o tecido social for costurado por homens sem convicções. Pobres homens, pobre humanidade. Pobre porque esses homens pobres serão arrebanhados facilmente, serão verdadeiras vaquinhas de presépio. Pobre humanidade por ter em seu conjunto social homens pobres, homens sem convicções. Enfim, meu amigo: falta de convicção significa pobreza. Uma pobreza só.

Mas não estou aqui para tratar dos problemas da humanidade. Os meus, pequeninos como um grãos de mostarda, já são de difícil manejo. Quem sou eu pra me meter nos graves problemas do mundo se nem os meus, pouquíssimos e paupérrimos, eu dou conta exatamente por me faltar esse elemento fundamental que distingue homens de ratos: as convicções?

Um homem precisa de muito pouco para viver. Os mais humildes dirão um chão, roupas, comida, trabalho. Pois eu digo que para um homem viver, e viver dignamente, ele precisa ter convicções. E mais nada. A convicção anima. A convicção acalma. A convicção entusiasma. A convicção movimenta. A convicção abre portas. E fecha também, com convicção. A convicção derruba. A convicção alimenta. A convicção une. A convicção empurra. A convicção desmancha. A convicção edifica. A convicção solidifica. A convicção cristaliza. A convicção serena. A convicção implode. A convicção satisfaz. A convicção perdoa. A convicção enfrenta. A convicção costura. A convicção ajuda. A convicção resiste. A convicção levanta. A convicção arruma. A convicção encara. A convicção basta.

O problema da convicção, amigo, é que ela é danada. Escapa, bandida, por entre suas mãos, seus dedos, como veia bailarina, como a água depositada num recipiente cheio de furinhos, como um chuveiro. Olhe pra cima. Veja lá a água caindo da ducha. Pois é. Você passa o dia remoendo até as vísceras, cutucando, e de repente, você a encontrou; um encontro fascinante e ao mesmo tempo sedutor. Nada! Afloram emoções, novos sóis e novas luas, novas águas e novos rios, e, de repente, como um castelo de areia, são arremedos de convicção implodindo, simulacros de convicção se desmanchando, projetos mal-acabados de convicção se espalhando. Convicção mesmo, nada.

Outro dia foi assim. Foi quase um ano refletindo, dialogando, exercitando o penoso e difícil hábito de pensar (não tão hábito assim), para chegar num ponto que me pareceu consistente e que me deu trabalho (só eu sei quanto). Quando imaginei que já tinha algumas certezas, elas se foram na velocidade de um gnu, se esfarelaram feito bolacha velha e tudo farinha virou; implodiram pilares, crenças, certezas e um arremedo mal-acabado de convicções. Mas não desisto, meu caro. Simplesmente porque trago a convicção de que no assunto convicção, não podemos desistir. É norte. Precisamos dela. Sou um homem sem convicções. Hoje. Um corpo sem alma. Uma alma sem destino, que vaga, que se perde, que se encontra, mas que se perde de novo. Tudo bem. Estou na trilha. Logo chego. Muito embora diga tudo isso ainda sem muita convicção.
 
P.S.: publicada originalmente no cronicadodia.com.br

sábado, 13 de setembro de 2014

Pau de Ferro

A informação está disponível no site da Prefeitura de Pau dos Ferros: “Até o começo do século XVII a região do atual município de Pau dos Ferros não passava de uma vasta área ainda inexplorada. Naquela época, na então província do Rio Grande do Norte, na chamada zona oeste, uma trilha foi feita por vaqueiros e viajantes para terem acesso até a província do Ceará. Ao longo dessa trilha seguia um curso de água, que estava sempre cheio nos meses de janeiro a junho, época do inverno na região. Esse rio mais tarde ficou conhecido por Rio Apodi. Essa região ficava entre duas grandes serras, tornando assim fácil de fazer longas caminhadas e aproveitar as pastagens nessa grande planície. Às margens do Apodi, umas grandes árvores eram utilizadas pelos viajantes para alívio do calor e como ponto de atividade comercial, como vender e marcar gados”.

Localizada no interior do Estado do Rio Grande do Norte, na microrregião homônima e mesorregião do Oeste Potiguar, a 393 quilômetros de Natal, Pau dos Ferros é um pequeno município de aproximadamente 28 mil habitantes, e lá, entre esses 28 mil habitantes, vive a família de meu grande e estimado amigo Pau de Ferro.

Quando o conheci, estranhei. Também, com esse nome... Estava no “Nosso Bar”, nas imediações da Santa Teresinha. Tomava uma cachaça quando ele chegou. Assumpção, o dono do bar, e por coincidência, meu avô, o encarou: “Vem um bocadinho aqui, Pau de Ferro, vem; deixa eu lhe apresentar meu neto”. Foi quando ele me explicou que o apelido era por causa de sua cidade natal, e não por outras razões. A partir daí, nos tornamos grandes amigos.

Pau de Ferro era pau pra toda obra. Se havia alguém que não recusava um trabalho, esse alguém era Pau de Ferro. E fosse o trabalho que fosse. Não era estudado, mas conseguira desenvolver certas habilidades que escapam ao conhecimento do fino homem das cidades. Pequenos serviços elétricos, hidráulicos, de construção. Fazia de tudo. E para serviço pesado, Pau de Ferro não podia faltar. Era comum vê-lo em mutirões pela vizinhança, subindo e descendo laje, com latas e latas de concreto nos ombros. O pagamento? Uma refeição simples, laranja, suco. E cachaça. Muita cachaça.

Esse era o seu ponto fraco. Sou daqueles que acredita que uma cachacinha só faz bem. Mas com moderação. Pau de Ferro bebia pra valer. Nos finais de semana então era fácil encontrá-lo cantando pelas ruelas, sem camisa, suando em bicas, bêbado que só vendo.

Pois nesta manhã recebi a triste notícia da morte de meu querido amigo Pau de Ferro. Dizem as bocas do bairro que ele enfartou. Que estava enchendo laje lá pras bandas do Marlene Miranda e sentiu-se mal. Chamaram o resgate, mas ele já chegou morto ao hospital. Quanto a outras informações, vigora ainda o desencontro. Ninguém sabe onde o corpo vai ser velado, horário do enterro, se avisaram a família. Pelo que sei, por aqui, não havia ninguém. A família era toda de lá, de Pau dos Ferros.

Como sou avesso a essas cerimônias fúnebres, optei pela oração, poderosa oração. Aqui mesmo, meu amigo, direto do meu computador. Receba esta oração em forma de crônica, descanse em paz, e nada de bebidinha aí, hein?

P.S.: publicada originalmente no cronicadodia.com.br

sábado, 23 de agosto de 2014

Guardados

Dia frio. Não sei se é coisa de velho, mas mesmo com uma preguiça inclemente, resolvo dar uma bisbilhotada. É uma caixa sem graça. Está lá, impregnada de poeira, guardada há séculos no fundo de um guarda-roupa. Nem lembrava mais dela. A modorrência me consome, mas não desisto. Coloco-a sobre a mesa. Abro.

Apanho um papel velho, amarelo, datado de 22/05/1996. Está escrito: “Teste imuno-químico de gravidez. Resultado: POSITIVO”. Lembro-me daquele dia. Estávamos tentando nosso primeiro rebento. Duas semanas antes, minha mulher havia caído em prantos com um pequeno sangramento, inconfundível aviso de começo de menstruação. Depois o sangue estancou. Duas semanas mais e o exame com esse resultado aí. O início da vida, ainda vidinha, do meu pequeno gigante militar.

Encontro dois cartões postais que muito me alegram. São do meu amigo Pompeo Ferro, pai do Francisco. Num deles está escrito: “Castellabate, 22/04/1992. Um forte abraço, Sergio. A você, a toda sua família e a todos do seu trabalho. Deste teu amigo que muito vos estima, Pompeo Ferro”. E no outro: “Naquela casinha lá no fundo, com a janela aberta, há 57 anos atrás, vinha ao mundo este seu amigo Pompeo. Um forte abraço a você, a toda a sua família e aos seus amigos de trabalho”. A cidade era San Marco de Castellabate, no sudoeste da Itália, cidade natal do meu amigo.

Vejo uma foto do saudoso Monsenhor Teófilo de Almeida Crestani, antigo pároco do Santuário de Santa Teresinha, que nos deixou em 11/12/1993. Lembro-me de uma frase monumental sua, dita para as carolas de sacristia que odeiam respirar o mesmo ar fresco dos jovens, e que cismam com a altura da saia das meninas: “Antes de minissaia na igreja do que fora!”.

Um adesivo. Um adesivo que nunca foi colado. Um adesivo do Pinguim, famosa choperia de Ribeirão. Sim, sim, é verdade, digo pra mim mesmo como que se respondendo a alguém. Estive em Ribeirão, na casa do César, meu cunhado, em 1995. Passamos um final de semana lá, e conhecemos o famoso chope.

Percebo que existem certos guardados que já deveriam estar no lixo. Por exemplo, uma tabela da Copa do Mundo de 1994, nos Estados Unidos. Pra que guardar uma tabela de Copa do Mundo? Vejo no grupo B que o Brasil, na primeira fase, ganhou da Rússia por 2x0; de Camarões, por 3x0 e empatou com a Suécia por 1x1. Depois ganhou dos Estados Unidos, em São Francisco, no dia da comemoração da independência deles, por 1x0, da Holanda por 3x2, da Suécia por 1x0, e, por fim, sagrou-se campeão em cima da Itália, nos pênaltis, quando o Baggio chutou aquela bola pra fora do estádio. Uma planilha de receitas e despesas (meu Deus!!!), quando eu pagava R$ 98,00 numa parcela de IPVA, era associado do Círculo do Livro e tinha conta no hamburgueiro do bairro. Ah, vejo que naquela época eu conseguia guardar dinheiro na poupança! Bons dias! Agora, pra que guardar nota fiscal referente à compra de um toca-fitas de carro no valor de R$ 248,20?

Chega. Chega disso tudo. Guardo os papéis de volta, fecho, volto a caixa para o seu lugar, no fundo do guarda-roupa. Fico a pensar, porém, se não seria caso de fazer uma faxina, jogar fora a velharia, tabelas de copa, planilhas, notas fiscais. É... Talvez... Qualquer dia desses.

sábado, 9 de agosto de 2014

Redução de jornada

A redução da jornada de trabalho é um assunto que vira e mexe estampa os bons jornais. Normalmente são os sindicatos que defendem arduamente a redução da jornada sem redução de salários, como forma de gerar mais empregos.

Padre Alberico, que narrou a história do sacerdote Antônio Miguel, no livro “Confidências de um sacerdote”, é um dos defensores dessa redução. Para ele, a redução da jornada de trabalho é uma medida positiva porque beneficia o ser humano, porque vai propiciar ao trabalhador um tempo maior para o descanso, o lazer, a vida em família.

Segundo ele, a política deve ser praticada com os olhos voltados para o ser humano. “É óbvio que a geração de novos empregos, em linhas gerais, também quer dizer isso, mas você não pode simplesmente julgar a ação política sob uma única perspectiva. Seria reduzir demais o seu impacto. Quando houve a diminuição de jornada de trabalho na França, e os novos postos de trabalho não vieram, a crítica partiu de forma pesada para cima da lei como se ela tivesse fracassado. Em absoluto. Veja a questão sob a perspectiva humanista. O homem ganhou um tempo a mais para estar com a família, para o lazer ou mesmo para estudar, fazer cursos, adquirir novos conhecimentos. O fim de qualquer ação política deve ser propiciar melhores condições de vida para as pessoas”.

Ainda segundo Alberico, “no Brasil, a redução da jornada para 40 horas semanais, e gradativamente, chegar a 35, é perfeita. O trabalhador brasileiro trabalha muito, nossa carga horária é uma das maiores do mundo, simplesmente porque existem as famigeradas horas extras. Não se trabalham 44 horas semanais, mas muito mais. É possível porque essa diminuição de jornada sem redução de salário é perfeitamente assimilável pelas empresas, que nas últimas décadas lucraram em demasia”.

Mas acredite, leitor, que outro dia, abrindo “O Globo”, vi que o bilionário Carlos Slim, proprietário da Telmex, gigante mexicana de telecomunicações, que alterna com Bill Gates o posto de homem mais rico do mundo, está defendendo uma semana de trabalho de três dias, “para reduzir os índices de desemprego e, de quebra, permitir que as pessoas inovem mais, além de passar mais tempo com a família. Neste modelo, a jornada de trabalho seria de 11 horas por dia”.

Pelo que vejo na notícia, a proposta não é nova. Em junho de 2012, em uma conferência na sede da ONU, em Genebra, o magnata já tinha defendido a jornada de três dias por semana, com “10 ou 11 horas, para ter livres os outros quatro dias e dedicá-los à família, a inovar, a cultivar-se o criar”.

Ainda consta da notícia que já existem programas que combinam uma redução de horas trabalhadas com subsídios do Estado. “Na Alemanha, por exemplo, o governo lançou um sistema chamado Kurzarbeit, pelo qual a jornada é reduzida em empresas que solicitam a mudança devido a problemas econômicos. O salário pago pela companhia aos trabalhadores diminui, e o Estado paga uma parte — mas não a totalidade — da diferença”.

Sabe que gostei da expressão: “cultivar-se o criar”? Muito boa, não? O trabalho deve dignificar, meu jovem, e não ser uma violência, um assalto à mão armada; roubar do ser humano o que ele tem de melhor: o seu próprio existir. O homem larga filhos, família, lazer, larga tudo, tudo; horas preciosas são comercializadas a preços módicos. Não sobra tempo pra nada. Um verdadeiro massacre.

sábado, 2 de agosto de 2014

Porto

Recomendações: 1) responsa, capisce? Responsa sim, meu camarada! Aproveite bem os seus dias, mas com responsabilidade, o que significa antes de tudo, pesar as consequências dos seus atos; 2) evite os excessos; se tem uma palavrinha mágica aí pra resumir isso tudo, essa palavrinha se chama equilíbrio; em tudo, sacou? Bebida, farra, mulher... 3) cuidado com a alimentação; não vá querer comer tudo o que vir pela frente; o tempero de lá é diferente do tempero daqui; nos primeiros dias coma o básico, basicão mesmo; cuidado com a gordura, os molhos; depois que estiver mais acostumado, aí sim você libera geral, mas vai com calma; 4) e o mais importante: faça tudo que tiver vontade, mas lembre-se que não é o fim do mundo; você terá muita coisa ainda pra viver. Ah, e chegando lá me mande uma mensagem avisando que chegou, ok?

Aproveito o instante, que vai durar alguns minutos entre o deslocamento de casa até o local marcado para a saída, na noite morna de um sábado julino, para rezar o terço pro menino. Meu pequeno gigante militar vai ouvindo tudo com atenção, balançando a cabeça que sim, concordando com tudo ipsis literis, já sabendo eu que a cabeça do bichinho já flana pelas ruas de Porto Seguro, no show do MC Guimê, numa noite em que se respira aventura e poder.

No meu tempo não tinha dessas coisas, não! Comemoração de formatura era numa chacrinha emprestada pelo pai de alguém, um churras básico, futebolzinho e olhe lá. Isso se a coisa toda não se resumisse a um encontro em alguma pizzaria da cidade. Sem contar que a comemoração era no final do ano. Claro! Eu nunca vi comemorar a formatura em julho! É igual aquela história de lançamento de carro. Lança o carro modelo 2015 em maio de 2014.

“E aí, véio?”. Eles chegam e se cumprimentam. Ficam só dando um bisu no movimento, meio de longe, tirando sarro das bagagens alheias, curtindo aquele momento que sabem único de toda uma existência. Não querem ir tomar seus assentos no ônibus. Num dado momento, já um tanto incomodada, uma mãe intervém dizendo que já estava mais que no horário e que seria melhor que eles fossem para o ônibus. “Nós já vamos. Só tamo esperando o Pedrinho”. Desculpa esfarrapada, penso eu. Naquela agitação toda, com certeza o Pedrinho já estava sentado em seu lugar, dando altas gargalhadas sobre tudo o que acontece à sua volta.

Passa o tempo e os grandes homens, que sabem tudo, enfim tomam a esperada decisão. Cada qual procura o pai, ou a mãe, para deixar-se cair num abraço gostoso de despedida, receber um beijo amoroso e transmissor de bons fluidos e boas energias. O meu segue a cartilha. “Vai com Deus, meu filho! E se cuide, hein?”.

Meu pequeno gigante militar partiu. Partiu pra Porto Seguro, deixando o dele aqui, porque lá, de porto seguro não vai ter nada. Dez baladas. Duas micaretas. Um churrasco com pagode. Shows com MC Guimê e MC Catra. Hotel com mais de quinhentos jovens sedentos de mundo numa semaninha básica sem os pais. Outro dia era eu recebendo as recomendações. Mudaram-se os papéis, mas até aí tudo bem. O problema é o mundo pra matar a sede dessa meninada: mudou tanto!

domingo, 27 de julho de 2014

sábado, 26 de julho de 2014

O tailandês

Você deve ter visto o tailandesinho dando uma lição de humanidade. Quem não viu? O conteúdo na rede é viral. Eu até larguei a breja pra prestar atenção. Eram coisas simples do dia a dia. Ajudar uma ambulante sem forças a empurrar seu carrinho de lanches. Tirar do próprio prato do almoço uma suculenta coxa de frango e dar a um cachorro faminto. Limpar a carteira para que o dinheiro impulsione os estudos da garotinha pobre. Pendurar um cacho de bananas na porta da velhinha necessitada. Tudo feito — com olhares de reprovação da maioria — por um sujeito pobre, que recebe em troca apenas emoções, um pouco de felicidade, um sorriso, uma lágrima. O vídeo é bastante interessante e vale a pena ver.

No balcão do Noguti, eis que sou tocado nas costas por uma jovem loura com um bebê no colo. “O senhor pode me dar um trocadinho?” A minha primeira reação foi dizer “não”. Nada mais irritante que alguém gozando de boa saúde preferir a esmola em vez do trabalho. Olho pra criança que parece bem cuidada, bem arrumada. Olho pra mãe e percebo que é jovem, forte, com cara de cansada. Mão na carteira, uma nota voa para o seu bolso.

O tailandesinho não apareceu aqui. Comigo? Até parece... Eu dei o dinheiro no automático, meu amigo, como se muda a marcha de um carro. Mas eis que vejo uma moça de azul perguntar no balcão se eles têm leite. Começo a bisbilhotar. “Morno”, a loura mãe intervém. Depois, vejo a mamadeira da criança sendo preenchida com um mistura de leite com Nescau. A jovem e seu filho sentados ao meu lado. A moça de azul lhe dando um salgado, um suco de laranja. Fazendo um carinho na criança que mama. Pagando a conta com satisfação. “Deus te acompanhe, viu?”, sai dizendo pra pequena família. “E sorte pra vocês!”. “Deus lhe pague”, responde a mãe, com a boca cheia de coxinha.

Saio de lá meio deprê. O tailandesinho poderia ter nascido em mim, mas nasceu na moça de azul. Vai ver encontrou um coração duro. E assim acontece todos os dias. Eu perdi a oportunidade. Ela não. Ela fez o bem. Simples. No seu dia, nas suas horas apertadas, numa oportunidade que apareceu, com boa vontade. Ela fez a diferença. Recebeu um sorriso, uma manifestação de felicidade, um “Deus lhe pague”.

Já em casa, pensando no ocorrido, eis que escuto alguém lá fora pedindo alguma coisa. Bingo! Meus olhos se arregalam. Escuto minha secretária dizer que vai ver o que tem. Eu desço na frente. “Xá comigo”. Pego um prato, cubro de arroz, feijão, um pouco de salsicha no molho, purê, tudo quentinho saindo do fogão. Alface, tomate, cebola.  Subo a escada em direção à porta com olhos de satisfação, feliz da vida por ganhar uma segunda chance.

“Ué? Cadê? Onde foi parar o anjão?”, digo pra mim mesmo. Vou até a esquina. Olho para um lado. Pro outro. Nada. O cara sumiu. Pergunto à minha secretária. “Vai ver ele tava com pressa”, ela diz. “É... Acho que estava mesmo”, concordo. “Não deu nem pra esperar o preparo do prato, seu Geia? Mal-agradecido!”.

De modo a não perder aquele estado sublime de compaixão, tão bom, que já via fugindo na velocidade de um gnu, procuro no YouTube o tailandesinho pra me socorrer, a britadeira, o remédio de que preciso pra desmanchar este coração de pedra.

                    

sábado, 19 de julho de 2014

08-07-14

“Falei que o tempo ia mudar!? Não falei?”, disse, entre um pão de queijo e outro, à minha mulher, que também tomava café na cozinha. Ainda assim, o céu carrancudo não me fez desistir. Shorts e camiseta, me mandei pra Santa. Até então, uma manhã comum, pessoas caminhando, gente indo pro trabalho, a Prefeitura quebrando o canteiro defronte ao Santander, uma senhora irritada com o serviço, principalmente quando soube que a obra visava dar mais espaço ao carrinho de lanches, muitíssimo procurado pelos também cidadãos, só que da noite.

Passei por um grupo que conversava no Carioca. O assunto, claro, o jogo contra os alemães, mais à tardinha. A dúvida era qual time Felipão escalaria, principalmente, quem entraria no lugar do Neymar. O consenso geral: Scolari entraria com três volantes, o que significaria futebol feio, mas efetivo. Na Copa de 94 ganhamos assim. Burocracia no seu mais alto grau. Um futebol tipo Zinho-enceradeira, mas calculista e eficiente. A bola não chegava à nossa área. Em compensação, as poucas que chegavam lá na frente, o baixinho guardava. Assim vencemos, assim perdemos. Vencemos a Copa na terra do Tio Sam; perdemos o futebol arte, plástico, cujo expoente máximo fora a Seleção de 82.

Faltando alguns minutos para as cinco me aprumei na frente da tevê. Puxei a poltrona pra mais perto, preparei um tira-gosto, abri uma breja. O time que iria jogar se aquecia numa parte do campo. O reserva, noutra. Escalei a equipe e percebi o arrojo do Scolari: Bernard, o menino prodígio, com alegria nas pernas, iria pro jogo. O Brasil atacaria os alemães. O jogo prometia. Um espetáculo se anunciava.

Passada quase uma semana do término da Copa do Mundo no Brasil, e exatamente onze dias do fatídico 08-07-14, ainda estamos juntando os cacos e nos perguntando: o que aconteceu? Acho que já me permito algumas reflexões depois de dias de apoplexia.

O brasileiro, na temática futebol, tem a mania de achar que o mundo gira em torno de seu umbigo. Nossa arrogância é singular. Somos os melhores e, para isso, temos cinco Copas do Mundo para justificar. Quando acontece uma tragédia dessas, entramos em parafuso, instala-se o processo de caça às bruxas, multiplica-se nos midiáticos um repertório de bobagens, há pouca, pouquíssima lucidez pra ser visitada.

É engraçado. É a primeira vez que vejo a crônica esportiva, quase na sua totalidade, defender um Brasil retrancado. Cheguei a ouvir comentários no sentido de que deveríamos jogar atrás, fechadinhos, deixando apenas um jogador na frente, explorando o contra-ataque. Historicamente, a crítica sempre defendeu o futebol arte, remetendo-se à Seleção de 82. E os técnicos? Sempre pensaram e agiram no sentido contrário, que o diga Parreira em 94. Vejo uma curiosa inversão de papéis. Scolari quis ganhar jogando pra frente. A imprensa defende que deveria jogar pra trás. O mundo do futebol está ao contrário e ninguém reparou.

A Alemanha não ganhava nada havia 24 anos. Iniciou o trabalho com o Löw há 10, não ganhou nada nesse período. É preciso tempo. O brasileiro tem paciência? Ou na primeira queda pediria a cabeça do treinador?     

Nada justifica o vexame. Precisamos mudar a cultura do futebol. Aliar a nossa capacidade nata com organização e conhecimento técnico e tático, que precisa ser importado. No mínimo, atualizado. Para isso talvez precise de algo que o brasileiro, quando o assunto é futebol, não tem: HUMILDADE.  No fatídico 08-07, ainda consegui ver o gaúcho juntando os cacos, enquanto eu juntava os meus.

sábado, 12 de julho de 2014

Linda Bela

Meia hora depois de chegar ao consultório, o doutor me recebe.

“Você se chama...”

“Geia. Pode me chamar de Geia”.

“Então, Geia. A situação de sua menina é grave. Eu diria que é gravíssima. Ela está com problema de pele sim! Pelo resultado do exame vi que é uma micose, mas esse é o menor dos problemas. O grave aqui é o rim. O dela está detonado. Eu diria que ela está na iminência de óbito”.

Antes de pensar bobagem, meu amigo, eu explico: estava no veterinário. O doutor, no caso, é o próprio. A menina, a minha menina, como ele disse, é uma cadela poodle já bastante idosa.

“Olha aqui os exames dela. Ureia. O limite é 60 mg/dl. O dela tá dando 319. A creatinina também tá alta. Ó, tá 8,53. O limite é 1,60 mg/dl. A literatura médica diz que acima de 9,00 o quadro é irreversível. Ela tá quase no limite. Se fosse um ser humano seria caso de hemodiálise. Há hemodiálise pra cachorro? Há. Não aqui, claro. Talvez em São Paulo. Campinas acho que tem. Nova York com certeza. Eu sei que é inviável”.

“ E aí?”, pergunto eu, meio encabulado.

“Sua menina é uma doente exemplar. O paizão aí deve ter muito orgulho dela. Ela não chora, não geme, parece que não tem nada. Só mesmo a perda de peso. De resto, parece que não tem nada. Mas os exames mostraram a gravidade do quadro” — vejo o doutor com o semblante grave.

“Bom, Geia, vamos tentar fazer o seguinte: vou lhe receitar dois remédios. Revimax Propentofilina 50 mg. Você dá metade, uma vez ao dia, durante dez dias. Baytril Flavour, você dá uma vez ao dia, também durante dez dias. Será necessário uma dieta alimentar. Meia latinha de Hill’s K/D por dia, misturada na ração. Depois de uma semana você volta aqui e repetimos os exames. Especialmente esses da ureia e da creatinina. Se os níveis baixarem, nem que seja um pouquinho, ótimo, sua filha estará respondendo bem ao tratamento. Caso contrário, aí a gente pensa”.

Saí de lá meio borocochô. Ainda mais porque mergulhei num universo de amor filial meio estranho pra mim, eu admito. Havia uma mãe preocupada com sua filhinha que debutava na tosa. Ela estava visivelmente tensa. Talvez mais tensa que a cadela. Quando a mocinha veio trazer sua menina, eu nunca vi coisa igual. A cachorra, também um poodle, começou a rodopiar no pescoço da mãe. Como nessas cenas de videocassetadas, em que o cachorro quer pegar o próprio rabo. Um casal estava lá com três cães. Um deles, no colo do pai. De vez em quando, beijavam-se amorosamente na boca. Havia um cachorrinho que dormia preguiçosamente no colo do rapaz, sendo por ele acarinhado. Uma cena terna. Quando terminei de pagar os remédios, ainda deu tempo de ouvir as instruções da jovem mãe que acabara de chegar com sua pimpolha: “Pode aparar as unhas. Se o pelo embaraçar pode deixar que em casa eu mesmo desembaraço. Isso dói muito e ela sofre. Ah, quanto à fitinha na orelha, eu queria cor-de-rosa, pode ser? Fica com Deus, tá filha! A mamãe já volta!”.

Borocochô. Completamente. Me sentindo o pior dos pais. Um insensível. Incapaz de derramar uma simples lagriminha.

P.S.: 10 dias depois de escrever esta crônica, Linda Bela nos deixou.

sábado, 5 de julho de 2014

Mais Copa

Até agora não entendi a conversa do Ministro da Justiça. Na abertura da Copa, Itaquerão lotado, a polícia descobre um cara próximo às autoridades em uma área de acesso proibido, com uniforme do GATE. Detalhe: o cara estava armado. Um atirador de elite avisa seus superiores sobre o intruso. Da sala de comando chega a informação de que não há nenhum policial do GATE naquela área. Desconfiam de algum terrorista disfarçado de policial. O atirador então pede autorização para abatê-lo. Abatê-lo! Isso mesmo! Resolvem esperar um pouco. Sacumé, né?, o ato poderia provocar pânico, criar um tumulto. De repente, na mesma sala de comando, repleta de policiais civis, militares e homens do Exército, alguém, olhando pelo monitor, o reconhece. Um policial. Um policial do GATE. Avisam o cara. Ele sai de lá.

Aí o Ministro da Justiça aparece pra dizer que o episódio foi normal e corriqueiro. Meu Deus! Se isso é normal e corriqueiro, não quero nem pensar no que possa ser anormal, segundo os seus critérios. Não me parece normal você se preparar para abater um homem de bem como se ele fosse um frango, e que está trabalhando exatamente para garantir a segurança das pessoas, não?

O cara faz do dente uma arma. Do céu ao inferno. De herói a vilão. Essas expressões cabem muito bem pra situação do moço, não? Precisava daquilo? Era um lance bobo! Ainda que por meios escusos ele tirasse o beque da jogada, não iria acontecer nada, absolutamente nada. Na comemoração, após o término do jogo, ele tava lá com cara de ameba, de Pernalonga depois de tomar uma rasteira. Viu? Eu vi. Ele sabia que tinha feito bobagem e que levaria um gancho. Ô, Suárez, depois daqueles dois golaços contra os ingleses você apronta uma dessas? Bye, bye, Brasil, ué! Quer o quê?

O Brasil inteiro pesa nas costas dos nossos esforçados meninos. Deu pra notar bem nitidamente isso no rosto sofrido de nossos heróis. Eu nunca vi coisa igual: uma seleção tão com cara de derrotada antes de uma decisão por pênaltis como a do Brasil no jogo contra o Chile. Thiago Silva, o nosso capitão, abaladíssimo. E o Júlio? Surpreendentemente ganhamos. Surpreendentemente porque, ao contrário do Brasil, o Chile estava confiante, consciente de que nunca jogou tanto como naquela tarde quente em BH. E em decisão por pênaltis, confiança é tudo.

A propósito, sinto por demais tudo que o Júlio César passou nesses quatro anos. Sinto porque seu sofrimento foi imerecido. O Brasil de Dunga foi uma grande seleção. Ganhou jogos memoráveis, ganhou torneios. Na Copa de 2010, no jogo contra a Holanda, fizemos um primeiro tempo fantástico. Jogamos mal o segundo, falhamos, perdemos a cabeça e o jogo. Mas peraí? Quando teremos a humildade de reconhecer que não dá pra ganhar todas as Copas? Aquele gol contra a Holanda não apaga a história de sucesso e vitórias do Júlio.

Quando você estiver lendo esta crônica com ares de bate-bola, o jogo contra a Colômbia já será passado. Oxalá, meu amigo, que nessas alturas do campeonato você esteja aí curtindo a Copa, emocionado com o esporte bretão, e tomando umas brejas pra comemorar a vitória do Brasil.

P.S.: jogamos bem e passamos com autoridade. Mas Neymar fora da Copa? Sei não...

sábado, 28 de junho de 2014

Falando um pouco de Copa

Tem cada uma. Antes criticavam o jogador por não cantar o hino. Alguns ficavam sérios, boca fechada; outros até abriam a boca; não pra cantar, imagina; pra mascar um chicletinho, um bubbaloo de tutti-frutti; outros ainda não cantavam, não chupavam nada, e não estavam nem aí com a hora do Brasil; queriam jogar e pronto.

De repente, os caras começam a cantar. Vejam o David Luiz, por exemplo. O cara encarna uma nação inteira, estufa o peito e canta a plenos pulmões, um verdadeiro Plácido Domingo do futebol. O Neymar se emociona com o hino, com a multidão cantando, e chora, chora como uma criança. E o que a gente escuta? Os jogadores estão cantando o hino em vez de jogar; o Neymar perdeu a concentração; futebol não se ganha cantando, se ganha jogando. Ah, fala sério!

Copa do Mundo é um campeonato de tiro curto, com grandes equipes. Dificilmente uma seleção sobra. E quando sobra, não significa que irá ganhar a Copa. Em 82 nós sobramos, não? E perdemos. Há muitos fatores envolvidos, inclusive a sorte. Em futebol tudo é possível. O Brasil pode ganhar a Copa. Como também a Alemanha, a Argentina, a Holanda, a França. Mas se perdermos, não vai ser por causa do hino, pelamor...

Criticaram muito a abertura da Copa. Criticaram a Claudia Leitte. O careca lá com cara de gângster, o tal do Pitbull. Criticaram a música. Mas, sinceramente: que abertura? Que Claudia Leitte? Que Pitbull? Não vi nada disso. Eu só vi a Jennifer. A J.Lo, muito embora tenha sonhado com a Shakira num remember. Agora a musiquinha, essa eu ouvi. Que coisa medonha. Não tinha coisa melhor pra apresentar, não?

Decepção foram os espanhóis. Também, quer o quê? O bigodudo deixa o Piqué, o Xavi, o Fábregas, o David Villa e o Fernando Torres no banco? Quer ganhar do Chile como? O jogo contra a Holanda foi atípico. A Espanha sempre foi uma equipe que se pautou por jogar e deixar jogar; perdendo, aí que os caras se mandam. Tomou aquela surra, e ele muda o time inteiro? Ele não tinha melhores jogadores pra colocar. Deixa os caras então, pô!

E o Diego Costa? Ele veio ao Brasil? Veio? Acho que quem veio foi um sósia. Vixe, no Brasil tem tanto sósia... O Messi quase saiu abraçado com o Ronaldinho Gaúcho, em BH. Quer dizer, com o sósia do Gaúcho. Falaram tanto desse Diego Costa... Ele o Fred... Olha... Unha e carne. Mas será que também é o sósia do Fred?  Será? Tudo bem que o bigode ajudou na hora de botar a bola pra dentro contra Camarões. Não sei não... Eu colocaria o Luiz Fabiano. Tá certo que o moço tá mais cansado, mas olha, sou mais ele que o Jô e o Fred juntos.

As musas da Copa? O Paraguai não veio, mas disseram que a Larissa tava por aqui. Quatro anos mais velha, mas musa sempre musa. A Sara Carbonero não sei se veio. Deve estar meio decepcionadinha, coitada. Dizem que quem tá mandando no pedaço é uma tal de Vanessa Huppenkothen. A moça é mexicana, jornalista da Televisa. Ela tem um quê de Paola Oliveira com olhos verdes. Uma foto dela de azul é a Paola. Igualzinha. Musas anônimas não faltam. Francesas, italianas, inglesas, uruguaias, argentinas e brasileiras. Alguns jogos valem menos que as musas que estão no estádio.

“Fiifaaaa! Muda o foco, vai! Dá uma viradinha na câmera. Jogo tipo Argentina e Irã é um prato cheio. Vai por mim!”

sábado, 21 de junho de 2014

Crônica sisuda

Uma polêmica está abalando o sistema público de transporte sobre trilhos na França. A notícia diz respeito à compra de 2.000 novos trens que serão utilizados na melhoria do sistema de transporte de passageiros daquele país. O problema é que os trens comprados não cabem no espaço de 1.300 estações regionais por onde eles deverão circular. Um pequeno erro de cálculo, digamos.
 
Volto ao início da notícia para ver se é isso mesmo, se a jornalista não comeu bola citando o país errado. Um deslize pequeno, quem sabe... Mas vejo que não; o deslize, dos grandes, quem cometeu mesmo foram os franceses. Por causa desse erro de cálculo, o governo terá de mandar reformar todas as estações, num custo preliminar estimado em 150 milhões. “Descobrimos o problema um pouco tarde”, disse o porta-voz do setor ferroviário. “Estou consternada por esta decisão tomada por dirigentes que estão fechados em seus escritórios e não têm contato com a realidade”, afirmou Ségolène Royal, Ministra de Ecologia e Transportes. “É um desperdício escandaloso de dinheiro dos contribuintes”, disse Hean-Claude Delarue, membro de uma ONG que defende a melhoria do sistema de transportes públicos.
 
Após saborear essa bizarrice francesa, amável leitor, que tem gosto de croissant, imaginava rabiscar algo parecido, afinal, tais deslizes não são privilégios dos europeus.  Quem sabe falar do trator sepultado no Canindé, lembra?, ou do teatro joseense cujo alicerce fora erigido de trás pra frente. Tenho por mim que a crônica sairia mais leve; com certeza, mais graciosa. Mas senti, pelo caminho, a invasão de uma inspiração quase burocrática a se apossar de tudo, da mente, dos dedos, da verve; quando vi, a tela já estava repleta deles, muito embora seja eu um amante inveterado das letras, e o inimigo número 1 desses filhotes de bingo: os números.
 
Lembrei-me da Copa do Mundo no Brasil, que está a rolar neste junho de 2014, dos milhões gastos na construção e reforma de estádios. Em maio de 2009, a previsão com o gasto todo era de R$ 3,7 bilhões. Uma bela soma, não? Mais ou menos assim: Mané Garrincha, 520 milhões; Arena da Amazônia, 500 milhões; Arena Pernambuco, 500 milhões; Maracanã, 430 milhões; Fonte Nova, 400 milhões; Castelão, 300 milhões; Arena das Dunas, 300 milhões, dentre outros.
 
Foi isso que vi à época e que meus arquivos digitais tão bem guardaram. Um gasto excessivo para um país de múltiplas carências. Mas se gastou muito mais. As notícias de hoje, que pipocam em qualquer jornal e na web chegam a assustar. No Mané Garrincha, por exemplo, gastou-se 1,43 bilhão; na Arena da Amazônia, 605 milhões; na Arena Pernambuco, 529,5 milhões; no Maracanã, 1,19 bilhão; na Fonte Nova, 591,7 milhões; no Castelão, 623 milhões; na Arena das Dunas, 350 milhões. Encontraram ainda 855 milhões para colocar no novo estádio do Corinthians.
 
Está certo que esse dinheirão todo não dá nem pro começo quando o assunto é educação e saúde. Mas gastaram mal. Vejo estádios magníficos em Estados sem futebol. Vejo a Copa em todo o Brasil, quando o mais correto seria concentrar os jogos em dois ou três Estados.
 
 Ah, meus amigos, não falei? Que crônica mais sisuda. Antes tratar de assuntos mais amenos, como o show desse monstro chamado Rafael Nadal em Roland Garros ou a minha dama-da-noite, que está uma lindeza só, e que bastou mudar de lugar pra me presentear com um perfume excepcional.
 

quarta-feira, 18 de junho de 2014

domingo, 8 de junho de 2014

Crônica do Dia

Meus amigos. Um novo projeto. Sábado sim, sábado não. Minha crônica. No “Crônica do Dia”. Dia 14/06. A primeira. Um grande time. Cronistas de diversas partes do Brasil. Batendo bola. Cada dia uma crônica. Pra quem gosta, biscoito fino. Tem gente boa lá. Detalhe: a crônica será inédita. E não será republicada aqui, no Recanto, Texton ou Matéria-Prima. Só lá. No “Crônica do Dia”. Visitem http://www.cronicadodia.com.br/. E vamos que vamos. Valeu!

sábado, 7 de junho de 2014

Futebol

Meu pai, que foi goleiro, que jogou em muitos clubes da cidade, que se tornou profissional, que defendeu o Esporte Clube Taubaté, que chegou a ser cotado pra Seleção, que defendia a bola com uma única mão, não gostava de futebol. Epa! Peraí. Não... Não é bem assim... Tá, ele gostava. Gostava sim. Mas digamos que com o tempo, desgostou. O futebol pra ele perdeu o encanto. O romantismo vai. Não torcia pra time nenhum. Diziam que era são-paulino. Ele negava. Não assistia a jogos na tevê. Nos domingos à tarde, quando eu o convidava para ir ao Esporte, ele preferia o cochilo.

Eu não entendia muito bem esse seu comportamento. Alguém que viveu no meio, de repente, desgosta de tudo? Mas acho que agora, 11 anos após a sua morte, eu começo a entendê-lo um pouco.
A ficha caiu no domingo à tarde, depois de assistir ao primeiro tempo do jogo Santos e Flamengo, pelo Campeonato Brasileiro de Futebol. Desliguei a tevê e pra lá só retornei quando a Cultura apresentava o “Metrópolis”. Optei por uma arrumação na minha bagunçada mesa de trabalho. Isso me deixou encabulado. Eu, hein? O que tá acontecendo? Foi aí que comecei a entender.
Primeiro a arrumação. Vamos lá. A verdade, meu amável leitor, é que eu me encontro no caos. Esse é o problema. Você, não? Pois é... Eu, sim. Uma conta pra pagar, um papel com a impressão de uma crônica do Veríssimo, o nome do médico indicado por um amigo, uma anotação, livros, agenda, óculos escuros, papéis, enfim. Mas tudo que eu quiser eu acho nesse caos da minha mesa. No meu caos. De repente, minha mulher dá uma passadinha pelo escritório e deixa a mesa um brinco. Tudo organizado e limpo. E eu não encontro mais nada. Pois num domingo à tarde, depois de uma cachacinha, um almoço em família, largar o futebol pra arrumar mesa de trabalho?  Devo estar ficando doido!
Mas foi aí que a coisa começou a fazer sentido. Que futebol? Esse aí, meus camaradas? Essas peladinhas? Nada! Futebol acabou. Não existe mais. Pelo menos por esses campos daqui, porque Atlético e Real foi um jogaço! Não sei diagnosticar a raiz do problema. Acho que um pouco tem a ver com a televisão, o negócio em si. A televisão banalizou o futebol. Jogo toda quarta e domingo? Cansa! Até a eternidade cansa, não? Lembro-me que antigamente não se passava jogo na tevê com tanta frequência. Talvez por isso, o produto era mais interessante. Lembro-me que os jogos no Rio, no domingo, eram às cinco da tarde. Maracanã lotado. Fla-Flu. Uma beleza. Aí veio a tevê e mudou o horário. Não, não. No Rio, jogo tem de ser às cinco. Tem mais a cara do Rio.
Mas por virar negócio, aquele romantismo ingênuo tão característico das pelejas de antigamente se perdeu. Veja como as pessoas se divertem com futebol amador. Outro dia um jornalista disse que alguns jogos da rodada foram ofensas ao futebol. Imagino que Garrincha, Sócrates, Telê Santana e tantos outros devam estar se contorcendo.
Meu pai, um visionário, já devia estar vendo tudo. Hoje, na hora de jogo, acho mais interessante arrumar a mesa de trabalho. E sem remorso.  Pelo menos a gente descobre preciosidades como essa crônica deliciosa do Veríssimo sobre aniversário de casamento. É hilária.

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Algumas lembranças

O frango caipira na mesa. A conversa rola solta na cozinha. Política, esporte, gente que morre. “Você lembra do Alcebíades, pai? Marido da Margarida do seu Genaro? O Genaro, pai? Aquele que certa vez bateu o carro aí na frente?” “Ah, o Genaro!” “Então, o Alcebíades era o marido da Margarida”. “O Alcebíades eu não sei”. “Claro que sabe, pai! Ele vivia no bar!”
Eles contavam ao meu avô que o Alcebíades tinha morrido de câncer. Eu no quintal, ao lado do pé de araçá, alheio à conversa, sem imaginar naquela época o que significava a palavra câncer, nome feio que as pessoas evitavam falar, e que eu conheci mais de perto muito mais tarde. Apanho um araçá azedo que dói. Arrumam uma mesinha vermelha no quintal. Colocam uma toalha branca, um prato, talheres. O sol claro. Céu azul. No meu prato tem frango, macarrão, que não falta aos domingos. Sento na cadeira e solitariamente almoço. Na cozinha, a discussão corre solta.
O relógio da sala faz tic-tac, tic-tac, tic-tac. No sofá, tento dormir um pouco. Meus pais batem pro velório onde jaz o meu avô. O outro, por parte de pai. Só escuto o tic-tac, tic-tac, tic-tac. Sem querer ou mesmo dar conta, me concentro nas batidas, pensando no meu avô. Tic-tac, tic-tac, tic-tac. Onde será que ele vive agora? O sono vem.
A calçada estreita da Barão à espera de nossas pernas saltitantes. Dá-se a largada. Em cada instante, um na frente. Eu acelero e me deparo com um pé. Sinto o mergulho. Um rodopio esquisito. A batida. Um cheiro de pó. Ardem braços, pernas, cabeça. Levanto já me limpando, para aceitar conformado a derrota. Bem calmo, vou dizendo que “tá tudo bem”. Até pintar de vermelho a calçada.
Tic-tac, tic-tac, tic-tac. Estão discutindo sobre dinheiro. Meu avô reclama de alguma coisa. Alguém se levanta e corre pro banheiro chorar. Na cozinha também tem choro. Meu avô levanta da mesa, vai em direção ao seu quarto, fecha a porta. Meu avô dorme sempre depois do almoço. Um pouquinho só. A sesta. Uma meia hora. Pode a casa estar caindo, pode surgir o compromisso que for, até mesmo um velório. “Eles não vão esperar você acordar, nego!” – escuto minha avó dizendo. Ele não quer nem saber.
Tic-tac, tic-tac, tic-tac. Acordo com aquela sensação agravável. Olho o relógio. Não pode ser. Só dez minutos? Não acredito. Parece que foi tanto. A casa silenciosa. Saíram todos, diz minha avó sentadinha do meu lado, numa cadeira de balanço, escutando rádio, fazendo crochê. “Só ficou seu avô, que tá dormindo”. Escuto o Silvio Santos. Minha avó adora o programa de rádio do Silvio. Minha bisavó adorava o Silvio. Minha avó adora o Silvio.
Tenho vontade de dormir de novo. De ouvir o tic-tac, tic-tac, tic-tac. O Silvio falando no rádio. Tenho vontade de voltar ao quintal, ao pé de araçá, à hora do almoço. Ontem foi mais suave. E mais colorido. E mais lírico. Hoje é mais cruel. E mais cinza. E mais triste. Meu avô não dorme mais depois do almoço. Minha avó não faz mais crochê. Não tem mais almoço de domingo. Não tem mais araçá. Não tem mais família reunida. Nem casa tem. Não sobrou nada.
P.S.: Excepcionalmente postada nesta sexta-feira 

sábado, 24 de maio de 2014

CNH

Sabe aqueles papos de botequim? Pois é. Dia desses, após umas cervas geladas, derrapei já meio sonolento num pensamento de Epicuro — “Por que temer a morte? Enquanto eu sou, a morte não é; e, quando ela for, eu já não serei. Por que deveria temer o que não pode ser enquanto sou?” Ele chegou instigado por aqueles papos existenciais que cheiram a mofo, típica conversa de botequim pós-breja: “De onde viemos? Pra onde vamos? Como será o lado de lá? Quem tem medo da morte? Quem não tem? E gente que vai num estalo? E gente que sofre horrores?”
Mas não é nada disso que quero falar, meu amigo. Nem sei por que comecei essa história toda. O que quero falar mesmo é sobre a renovação da minha carteira de motorista, assunto muito, mas muito mais interessante que qualquer conversa de botequim.
Minha primeira habilitação, tirada aos dezoito, durou que foi uma beleza. Depois que fiz quarenta é que tive que entrar nessa de renovação a cada cinco anos. A primeira renovação demandou até provinha. A de agora, não. Nada que um belo de um Poupatempo não desse jeito. Fui pra lá meio desconfiado. Sacumé, né? Era a primeira vez que utilizava os serviços dessa invenção “primeira classe” da burocracia estatal. Que assusta, pois os serviços do Estado estão armados de burocracia até os dentes. E a desconfiança só aumentou vendo aquele mundaréu em filas e cadeiras. Me dirigi à mocinha bem maquiada que me indicou a fila tal; sete minutos depois, passava pela triagem, recebia uma senha e seguia em direção ao Detran.
Primeiro a documentação. Coisa rápida. Eficiente. Mais uns minutinhos de espera e a foto. Mal acomodado num cubículo, a moça me manda tirar os óculos e endireitar os ombros. “Pera aí! Como tirar os óculos?” “Precisa tirar, senhor” “Você está me dizendo que vou ter de ficar cinco anos com a foto de um sujeito que não tem nada a ver comigo? Óculos fazem parte da personalidade, sabia?” “Precisa tirar, senhor” Até agora não entendo. Tiramos ambos: eu, os óculos; ela, a foto. Exame médico. Rápido. Pressão arterial. Letrinhas miúdas. “O senhor vai até o banco, paga as taxas e retorna com os comprovantes” Sabia. Agora a coisa pega. Banco. Fila. Nada! Pra minha surpresa, a agência bancária do Poupatempo estava vazia. Pagamento rápido. O fato é que quarenta e cinco minutos depois de ter entrado, eu saía. E com o protocolo na mão, para retirar a CNH dia seguinte, olha que beleza.
O que pegou mesmo foi depois. Não achava o protocolo. Como pode? Revirei tudo. Casa. Trabalho. Carro. Carteira. Nada. Só ouvindo as piadinhas dos colegas, coisa da idade, esquecimento, normal, etcetera e tal. Fui com a cara e com a coragem, levando a CNH antiga. Quando a tiro da carteira, tava lá, carimbado no verso: “retirar dia 09, após às 10:00 horas”.
Pior que perder o protocolo é achar que perdeu o protocolo que você nunca recebeu. Como pode alguém perder uma coisa que nunca teve? Se nunca teve, não pode perder. E se mesmo assim acha que perdeu, é porque em algum momento teve ou, porque a idade avança mesmo e seus amigos estão certos...

sábado, 17 de maio de 2014

Sabe, Geia

Eu caminhava na Santa Teresinha quando ele se aproximou:
“Oi, Geia”. Respondi no automático: “Opa!”
Ele agora seguia ao meu lado. Puxei da memória. Nada. Eu não o conhecia. Aí ele clareou tudo: “Eu acompanho suas crônicas no Matéria-Prima”.
“Ah, legal!”
“O meu domingo não é o mesmo sem elas. Sabe, Geia, a que mais gostei foi aquela daquele homem na praia da Almada. Em Ubatuba. Lembra? Solitário. Sem ninguém. Eu me identifiquei com ele. Também sou sozinho. Não casei. Vivi com meus pais até eles morrerem. Hoje moro sozinho. Sou aposentado. E tem aquele negócio mesmo da gente não falar com ninguém. Tem fim de semana que passa e quando me pego em casa, vejo que não conversei com ninguém. Eu sinto falta, sabe? Você não tem ideia de como meu coração tá acelerado agora. Busquei coragem não sei de onde para vir falar com você”.
“Qual o seu nome, amigo?”
“Pedro”.
“Poxa, Pedro, fico feliz em saber que minhas crônicas lhe fazem bem. A gente escreve e no fundo pensa que alguma coisa que tá ali possa proporcionar algo, qualquer coisa, ainda que apenas prazer ou um sorriso. E deixe pra lá esse negócio de ficar nervoso. Venha falar comigo sempre que quiser”.
“Sabe, Geia, às vezes me bate um certo arrependimento. Eu tive diversas oportunidades de estabelecer um vínculo com alguém. Mas nunca tive coragem de abandonar meus pais. E eles viveram muito. Meu pai morreu primeiro. Viu como sua crônica da viúva é verdadeira?, he,he,he! Meu pai morreu com 79. Minha mãe, com 85. Então, com a morte deles eu pensei, ah, agora caso. Que nada. Eu já era uma pessoa cheia de manias, não ia conseguir mais viver com uma mulher debaixo do mesmo teto. Minto. Até pensei num compromisso sério com a Inês. Mas você acredita que a Inês enfartou? Morreu, Geia! Morreu!”
“Verdade? Poxa... Sinto muito...”
“Depois dessa não quis saber mais. Foi um sinal. Sabe, Geia, eu acredito muito em sinais. Ninguém dá bola. Eu dou. Eu faço conexões. Outro dia na fila da padaria vi uma cena. Era uma mulher tentando pegar um chaveirinho. A moça do caixa,  extremamente mal-humorada, a interrompeu de forma grosseira: ‘Esse aí não é pra pegar, não! É o daqui de dentro’.  A mulher ficou sem entender. Eu intervim: ‘É que esses são apenas amostras. A senhora escolhe e a mocinha pega um igual lá dentro.’ Educadamente, ela agradeceu. Mas desistiu do chaveirinho. Tem gente muito mau- humorada, Geia. A verdade é que não gostam do que fazem. Em compensação, num supermercado, encontrei um açougueiro humorista. A fila estava enorme...”
Conversamos muito naquele dia. Na praça, durante minha hora de caminhada, e depois, tomando um suco na padaria. Acho que fiz bem a Pedro. Acho que ganhei um novo amigo. Mas não sei não... Esse negócio de ele às vezes passar o fim de semana sem falar com ninguém tá meio mal contado... 


sábado, 10 de maio de 2014

Dengue e dengosos

Recebi a notícia de que meu amigo Jorge está com dengue. E também meu amigo Pedro. E Du também. E Marcos está com suspeita. Como também o professor de desenho da minha filha. Seu amiguinho de inglês pegou. A cada acesso ao facebook, vejo um novo amigo picado pelo xexelento. Antigamente ouvíamos relatos de dengosos pela cidade, mas a coisa parecia distante, como se a realidade existisse apenas além das muralhas de nosso castelo de fadas. Às vezes alguém da família, ou um amigo longínquo. Mas não se confirmava nada. Agora não. O mosquitinho vem fazendo estragos e já vejo uma nuvem deles se aproximando do Paraíso. Dia desses corri ao médico com meu pequeno gigante militar. Uma gripezinha danada. Ainda bem.
Como você deve saber, no último mês passei às turras com os preparativos do lançamento do meu livro. Deu trabalho. Porém, um trabalho prazeroso, como deve ser todo trabalho. Quem faz o que gosta dispensa aposentadoria. Eu, por exemplo. Se conseguisse viver de meus textos seria uma beleza. Escreveria até morrer. Mas confesso que não via a hora de chegar o tão esperado dia. Ansiedade? Nada! Não era tanto pelo evento. Estava sim incomodado com a simples possibilidade, cada vez mais real, desse insetozinho sem-vergonha vir bater à porta da minha casa. Já pensou? Eu largado na modorrência, entregue a cuidados terapêuticos, me abastecendo de soro o dia todo e sofrendo das terríveis dores corporais, que dizem ser intensas!? E mais! Noite de autógrafos. O autor não veio. Está dengoso. Eu, hein?
Aliás, adivinhe o que mais ouvi na noite de lançamento? “Já fez filhos?” “Já!” “Plantou árvore?” “Já!” “Então já posso morrer?”, eu indagava em tom jocoso. E dizia: “Há como desplantar, meu amigo? Sim! Desplantar! Pois vou já! Lá em Cunha. Tratar de dar cabo da pobrezinha”. Bobagens, caro leitor. Bobagens.
Mas estou com meu amigo Lucas: o homem perdeu a guerra. Pois é. Um bostinha de um mosquito tolo. Temos acesso a um tesouro a que todos chamam de conhecimento. Sabemos como evitar a proliferação. Sabemos o que fazer. E o que não fazer. E mesmo assim, não somos capazes de nos organizar minimamente a ponto de evitar essa doença de terceiro mundo.
Isso daria um belo filme hollywoodiano, não? Um desses Spielbergs americanos traria um quê de Independence Day ao curta. Acho que ficaria bom, embora o perigo não estivesse entregue aos feinhos alienígenas, mas a simples mosquitos de água de sarjeta.
Não se trata de chafurdar na arrogância humana, meu amável leitor. Quando Cortella fala que você é um entre 6,4 bilhões de indivíduos, pertencente a uma única espécie, entre outras três milhões de espécies classificadas, que vive num planetinha que gira em torno de uma estrelinha, que é uma entre 100 bilhões de estrelas que compõem uma galáxia, que é uma entre outras 200 bilhões de galáxias num dos universos possíveis e que vai desaparecer (*), ele simplesmente está dizendo isso: que você não vale nada.
Que a gente não vale nada, tudo bem, a cada dia que passa o homem com seus atos dá provas disso. Mas sucumbir diante de um mosquito? Ah, peraí...
 * Qual a tua obra? Mario Sergio Cortella, pg.26.

sábado, 3 de maio de 2014

Zen

Ultimamente ando meio cabreiro com a igreja dos homens. Está certo que a igreja, na sua dimensão humana, tende a refletir em boa medida, as misérias desta classe cada vez mais pobre. Mas esta justificativa por si só não me faz engolir uma porção de coisas que prefiro nem falar.
Só sei que apesar disso, outro dia não resisti e resolvi dar uma entradinha na Catedral. Esperava que com a igreja vazia, abstrações como o silêncio, a contemplação dos afrescos, as imagens dos santos, o delicioso cheiro de incenso, pudessem me levar a um gostoso passeio matinal, ainda que breve; uma viagenzinha amorosa, quem sabe bater às portas do Paraíso, hein?, tocar as mãos do Cristo, sentir o abraço das Marias, compartilhar umas frutinhas com o velho Chico debaixo de uma jabuticabeira.
Não tenho boas recordações da Catedral. Estive lá algumas vezes testemunhando a união de camaradas. Não sei se ainda é assim, mas naquele tempo casava-se muito. Marcavam pras quatro. Recebíamos o convite e tava lá anotadinho: “quatro da tarde”. Como sempre pontual, chegava com alguns minutos de antecedência. Depois de ver dúzias de noivas desfilarem seus véus enoooormes pelo tapetão, a minha noiva, quer dizer, a do meu camarada, aparecia portentosa na porta da igreja. Isso lá pelas seis, sete da noite.
Meu amigo Zé Eduardo, de Sampa, me disse outro dia que agora a moda é chegar no horário. Nada de atrasos. Muito bom. Isso se chama respeito aos convidados, coisa que muita noiva desconhece. No entanto, agora chegam no horário, mas inventam um supermercado de cafonices que é um tédio só.  Trombetas, clarins, rosas, imagens, papel picado. Noivos atores. Pose aqui, pose acolá, sorriso de comercial de pasta de dente. Não é o cameraman que está lá para registrar um fato. O casamento é concebido em função da filmagem. Aliás, o cameraman manda mais que padre. Sentido do sagrado zero.
Mas não quero falar de casamento. Quero falar do meu momento zen em uma manhã ensolarada na Catedral de São Francisco. Confesso que me decepcionei um pouco. Não encontrei o silêncio que esperava, o pontilhão que imaginava atravessar para encontrar o céu. Encontrei meu querido padre Marquinhos falando para os seus fiéis lá longe, naquele altar exuberante. Por falar em altar, sempre admirei o altar da Santa Teresinha, onde cresci. Mas altar que é altar, venhamos e convenhamos, Fred, é o da Catedral. Que beleza. Quantas pessoas cabem lá? Hein?
A Catedral estava cheia de fiéis participando da missa do Santíssimo. Marquinhos arrumou um moço bom na música, o povo todo delirava vendo o sacerdote, seguido de seu séquito, deslizar pelos corredores apertados trazendo às mãos o poderoso Salvador.
Olha, meus queridos, admito que queria o silêncio. Admito que me decepcionei um pouco ao entrar e trombar com a confusão toda. Mas, pra minha surpresa, quando dei por mim, já estava fazendo a travessia. Não consegui sentir as mãos furadas do Cristo, o abraço das Marias, ou mesmo provar das frutinhas silvestres do amigo Chico. Ainda bem. É cedo pra isso. Mas acho que provei sim um pouco do gostinho do céu. E é doce.  

sábado, 26 de abril de 2014

O símbolo perdido

É com enorme pesar que comunico aos senhores e senhoras leitores: meu amigo Marcão, tão avesso às coisas novas desse mundo, tão resistente à profusão de tecnologia que brota como capim nas lojas e centros das catedrais do consumo, num rompante de pura contradição, cujas causas desconheço, mas que serão objeto de investigação oportuna, disse não ao seu velho e bom companheiro, para sucumbir às tentações do novo mundo.
Não parei de correr para não perder o ritmo, mas como sempre ele estava lá, na mesma praça, no mesmo banco, as mesmas flores, o mesmo jardim. Confesso que demorei alguns segundos para decifrar o mistério. Quando caiu a ficha, senti o coração apertar: cadê o seu companheiro? E num piscar de olhos, a imagem tomou conta da tela, fazendo inundar a visão com o pequeno orifício de seu orelhão (Marcão sempre foi orelhudo), e eu notei, flanando quase imperceptível, os fios, finos e frios, de um minúsculo fone de ouvido.
A imagem, a outra, sempre provocara boas sensações: ele ali, sentadinho, alegre, bem ao lado de seu radinho (e não eram companheiros?), ouvindo canções antigas, sereno, às vezes olhando pro céu, alheio ao movimento regular de carros e de gente que passava com pressa, e que nem notava a sua presença.
Deitava no pensamento umas lembranças saborosas, com cheiros e sons e tudo. E nesse mosaico memorialístico que me inundava, era ele quem desempenhava um protagonismo rudimentar. Eu me lembrava do meu, velho e bom, aquele que me acompanhou durante a infância, e que me acordava todas as manhãs gritando uma moda de raiz, junto com o cheirinho aconchegante de café passado a filtro de pano.
Não sei se o Marcão é aposentado, se é rico, se trabalha para alguns comerciantes do entorno (já o vi várias vezes varrendo a calçada), ou se vive à custa de sua mulher ou de seus pais. Também, isso não importa. O que importa é o que o Marcão representa para mim: o símbolo da resistência, o símbolo do “não” aos avanços desenfreados de um mundo louco.
Não, Marcão, você não. Não é a simples troca de um aparelho velho por um mais sofisticado. Isso é o de menos. O que pega aí é o que essa permuta inocente e antenada com a visão de mundo moderno representa: o símbolo perdido. A subserviência ao novo que, como um trator, passa por tudo o que é velho mas que foi bom e que continua sendo, que tem o seu charme, e que um dia foi importante na vida de muita gente. Que digam os motorrádios, as vitrolas, as remingtons, as facits, as fitas cassetes, os vinis...
Minha corrida ficou mais triste. Lembrei-me de como é broxante para mim a imagem do povo no estádio assistindo ao jogo com a televisãozinha na mão, vendo sua imagem correr as telas. O cara faz pose e quando vai avisar o amigo a câmera se esquece dele.
Pelamordedeus!
Marcão, você não, meu amigo!

 

sábado, 19 de abril de 2014

Jota Cê

Lembrei-me daquele dia, e, principalmente da nossa conversa, quando abri a correspondência destinada a mim, de um tal de Pintores com a Boca e os Pés Ltda. “Pintores com a boca?”, pensei. “E com os pés?” Hum, sei não... Eram cartões com desenhos de paisagens maravilhosas, pintados, segundo a cartinha que os acompanhava, com a boca ou com os pés. Eles pediam um pagamento pelos cartões. R$39,50.  Pagamento? Sei. Fui pesquisar. E descobri que se tratava de algo sério, uma associação fundada em 1956 por Erich Stegmann, que tem por objetivo proporcionar “uma vida independente para artistas que não têm o uso de suas mãos. Todos os membros dessa sociedade internacional são incapacitados de pintar usando suas mãos, e todos são beneficiados com a satisfação em poder ganhar seu próprio sustento, independente de caridade”. Sacumé, né? Tem muitos aproveitadores, a gente precisa se acautelar. Mas a conversa se avivou na mente.
“Preciso de um padre”, eu disse, já procurando não sei o que na maçaroca de papéis sobre a mesa. Ele me olhou assustado. “Um desenho”, acrescentei, voltando os olhos para os papéis. “Um desenho de padre”.
Embora deficiente físico (depois de um acidente de moto, perdera os movimentos da mão e do braço direito), e destro, Jota é um bom desenhista com a mão esquerda. Aliás, teve de reaprender a fazer tudo o que fazia antes, agora usando somente o braço e a mão esquerda. Conseguiu. Exceto tocar violão, talvez, sua maior paixão.
Jota é um artista. Tocou na noite. Deu canja com gente da pesada, como o Lula Barbosa, o Marcinho Eiras, o David Maia, a Maria Eugênia. Depois do acidente, sem os movimentos do braço direito, abandonou o violão. Mas a arte não abandonou Jota, que me entregou naquele final de dia o desenho que pedi, com traços perfeitos, simples, prontinho para estampar a capa do meu livro.
 Conversávamos sobre um sujeito que se dizia inválido para o trabalho, que não podia fazer mais nada, que pensava em requerer aposentadoria porque tinha perdido os movimentos de uma das mãos após sofrer um acidente de trabalho. Jota estava indignado. “Como inválido? A pessoa não tem noção da sua real capacidade...” Argumentei que as pessoas adoram se vitimizar. “Talvez seja mais fácil viver representando o papel do coitadinho, do pobrezinho...” Ele retrucou: “A vaga de um supermercado destinada ao deficiente físico, por exemplo, foi criada para a pessoa com dificuldade de locomoção, mas o cara que tem um problema na mão também usa a vaga e se acha no direito; o mesmo acontece na fila de banco. Isso, pra mim, não é o exercício de um direito, mas sim um abuso”.
Jota é um cidadão, um cara lúcido, dono de um pensamento refinado, que precisa de muito pouco pra viver, que detesta shopping, que curte os textos do Paulo Leminski, a música do Itamar Assunção, que não troca de celular três vezes por ano, mas somente quando o aparelho pifa, que prefere a panela e o fogão à mesa do restaurante, que valoriza o que tem. E um artista de mão cheia. Pra sobreviver, assim como centenas de milhares de artistas brasilianos, precisa enfiar as mãos onde a arte não chega.

Comunicado

O autor informa que suas crônicas estão sendo publicadas com exclusividade na página Crônica do Dia ( www.cronicadodia.com.br ). Convida...