sexta-feira, 18 de outubro de 2013

A borboleta

Encontra a empregada terminando um bolo de chocolate na cozinha. Do radinho de pilha vermelho e empoeirado, que funciona há décadas em cima da geladeira, escuta o locutor informar que o seu Benedito está querendo vender uma geladeira seminova, cor branca, Brastemp, pela bagatela de R$ 300,00. Enche uma caneca de café, que logo percebe trincada — bem a caneca azul comprada em Monte Sião, xodó de sua mulher —, segue até o quintal, onde arrasta uma cadeira até a parte assombreada, bem debaixo da jabuticabeira.
Aí está uma das vantagens de se morar em casa, e não num apartamento, ele pensa. O quintal. O dele é generoso, com muito espaço, metade terra, metade cimento. Ao fundo, onde o limbo dá lugar ao ocre macio da terra, tem uma jabuticabeira, uma macieira, uma pequena horta com couve, arruda, hortelã, cebolinha e alface; num dos cantos, a dama-da-noite, que perfuma a casa toda lá pelas sete e meia; no outro, o lírio pomposo da patroa.
Os passarinhos adoram o seu quintal. De manhã é uma festa. Cantam esfuziantes sobre a macieira, namoram, passeiam e chegam quase a entrar na cozinha à cata de migalhas de pão; roubam até a comida do seu cão. Quantas vezes não acordou ao som da sinfonia e fez amor com sua mulher...
Quem também aprecia o seu quintal é Bela. Um poodle branquinho que quando mais novo patrulhava o seu território com faro policialesco, proibindo a visita de gatos e passarinhos, mas que hoje se entrega à preguiça normal da idade, ritos finais de uma existência sólida e só. O que falta é um passarinho fugir da chuva e adentrar a sua casa, se instalar debaixo de seu cobertor. É só o que falta, ele pensa.
Fica a saborear o café ao som dos passarinhos. É um dia espetacular. O céu veste-se de azul — não tem uma nuvem sequer —, sol resplandecente, temperatura baixa, 14 graus no máximo. Uma beleza de dia vai fazendo, a Bela já andando preguiçosamente pelo quintal para tomar o seu solzinho.
No meio desse momento introspectivo contemplativo profundo, lhe chama a atenção uma borboleta azul morta no chão. É uma imagem que nem notaria se, na sua caminhada pela manhã, quando já estava perto do fim, não tivesse desviado de uma, deitada sobre uma folha de figueira, também morta, também azul.
E a que vê no quintal é idêntica àquela que viu há pouco. Será possível? Seria uma ilusão de ótica? Ou seriam borboletas gêmeas? Engasga com o riso fácil que brota do pensamento idiota. Isso não existe, diz a si mesmo em tom professoral. Se bem que, questiona-se segundos depois, num mundo de tantos mistérios e possibilidades, em que até o “chupa-cabras” foi parar em Nova York, conforme notícia que viu outro dia nos jornais, não é de se espantar que um cientista maluco qualquer, investido do poder soberano de Deus, tenha dado cabo da criação de um clone de borboleta. E se são clones, diz a si mesmo, são gêmeas. Uma empacotou lá, a outra sentiu o baque e empacotou aqui.
Perdoe-me a interrupção, meu amigo, pois imagino que esteja curioso pra ver onde tudo isso vai dar. Mas o espaço aqui é pequeno e me impede de lhe contar a história toda de uma só vez. Por isso, peço a você um pouquinho da paciência dos monges. Semana que vem, sem falta, coloco um ponto final nesse mistério.
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Comunicado

O autor informa que suas crônicas estão sendo publicadas com exclusividade na página Crônica do Dia ( www.cronicadodia.com.br ). Convida...