Aí está uma das vantagens de se morar
em casa, e não num apartamento, ele pensa. O quintal. O dele é generoso, com
muito espaço, metade terra, metade cimento. Ao fundo, onde o limbo dá lugar ao
ocre macio da terra, tem uma jabuticabeira, uma macieira, uma pequena horta com
couve, arruda, hortelã, cebolinha e alface; num dos cantos, a dama-da-noite,
que perfuma a casa toda lá pelas sete e meia; no outro, o lírio pomposo da
patroa.
Os passarinhos adoram o seu quintal. De
manhã é uma festa. Cantam esfuziantes sobre a macieira, namoram, passeiam e
chegam quase a entrar na cozinha à cata de migalhas de pão; roubam até a comida
do seu cão. Quantas vezes não acordou ao som da sinfonia e fez amor com sua
mulher...
Quem também aprecia o seu quintal é
Bela. Um poodle branquinho que quando
mais novo patrulhava o seu território com faro policialesco, proibindo a visita
de gatos e passarinhos, mas que hoje se entrega à preguiça normal da idade,
ritos finais de uma existência sólida e só. O que falta é um passarinho fugir
da chuva e adentrar a sua casa, se instalar debaixo de seu cobertor. É só o que
falta, ele pensa.
Fica a saborear o café ao som dos
passarinhos. É um dia espetacular. O céu veste-se de azul — não tem uma nuvem
sequer —, sol resplandecente, temperatura baixa, 14 graus no máximo. Uma beleza
de dia vai fazendo, a Bela já andando preguiçosamente pelo quintal para tomar o
seu solzinho.
No meio desse momento introspectivo
contemplativo profundo, lhe chama a atenção uma borboleta azul morta no chão. É
uma imagem que nem notaria se, na sua caminhada pela manhã, quando já estava
perto do fim, não tivesse desviado de uma, deitada sobre uma folha de figueira,
também morta, também azul.
E a que vê no quintal é idêntica àquela
que viu há pouco. Será possível? Seria uma ilusão de ótica? Ou seriam
borboletas gêmeas? Engasga com o riso fácil que brota do pensamento idiota.
Isso não existe, diz a si mesmo em tom professoral. Se bem que, questiona-se
segundos depois, num mundo de tantos mistérios e possibilidades, em que até o
“chupa-cabras” foi parar em Nova York, conforme notícia que viu outro dia nos
jornais, não é de se espantar que um cientista maluco qualquer, investido do
poder soberano de Deus, tenha dado cabo da criação de um clone de borboleta. E
se são clones, diz a si mesmo, são gêmeas. Uma empacotou lá, a outra sentiu o
baque e empacotou aqui.
Perdoe-me a interrupção, meu amigo, pois
imagino que esteja curioso pra ver onde tudo isso vai dar. Mas o espaço aqui é
pequeno e me impede de lhe contar a história toda de uma só vez. Por isso, peço
a você um pouquinho da paciência dos monges. Semana que vem, sem falta, coloco
um ponto final nesse mistério.
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