sexta-feira, 15 de novembro de 2013

A menina e o avô

Taubaté. Praça Santa Teresinha. Domingo. Oito e dez da manhã. Primeiro dia do horário de verão. Ela desce do carro animada. Estava no banco de trás. É graciosa, branquinha, bonita, cabelos lisos, castanhos, bem-tratados. Uns seis anos? Ele, sem a mesma animação, desce com dificuldade, a idade pesa. Os poucos cabelos que lhe restam são brancos, finos, como branco também é o seu bigode estilo Felipão. Fecha a porta. Engancha seu braço no braço da menina, como se fossem um casal, um casal amoroso, de amor maduro, sereno.

“Vovô, vamos apostar corrida?”
“He, he, he! Corrida? O vovô tá velho pra correr, filhinha! Vamos fazer o seguinte: o vovô senta naquele banco, e você, se quiser, corre, eu fico olhando.”
Ela, solidária, prefere a companhia do vovô. Juntos, sentam num banquinho assombreado.
“Vovô, conta uma história?”
“Uma história? Ah, história o vovô consegue contar! Deixa ver...”
Ele fica pensativo por alguns instantes, parece repassar mentalmente a história toda antes de começar. Organiza começo, meio e fim, talvez. E algum sentido; afinal, a netinha é esperta. Faz um carinho nela. Começa:
“Era uma vez uma menina chamada Ana. Ana gostava muito dos seus livros. Quando deitava para ler, experimentava uma sensação diferente, que ela não sabia dizer o que era. Ela só sabia que aquela sensação era muito gostosa e que ela queria que não acabasse nunca. Um belo dia, Ana estava lendo um de seus livros preferidos, que contava a história de um bruxinho chamado Harry”.
“É o Harry Potter, vovô?”
“Potter? Acho que sim! Se não me falha a memória, era Potter o sobrenome dele sim. Harry Potter! Mas então, Ana estava lendo no seu quarto, como fazia todos os dias, quando ouviu um barulho vindo de fora de sua casa. De repente, pela janela do quarto de sua mãe ela avistou um bruxinho de óculos, que veio lhe trazer um presente. Ele disse: ‘Olá, Ana! Trouxe pra você este livro de presente. Ele é simples, pequeno, são poucas páginas, mas ele vai te oferecer um tesouro, que muita gente procura, mas poucos encontram. Sempre que você se sentir tristinha, infeliz por algum motivo, abra este livro.’ E foi embora. A primeira vez que Ana se sentiu tristinha por não ter conseguido tirar uma nota boa na escola, ela abriu o livro. E o que foi que ela viu? Um desenho. Era uma praça bonita, um dia de sol, passarinhos na copa das árvores, ela, seu pai, sua mãe e o irmãozinho brincando de corrida. E Ana se sentiu feliz”.
Acho que foi mais ou menos assim. Admito que fiquei bisbilhotando conversa alheia. Meu alongamento demorou mais do que o costume, mas aquela cena me envolveu de forma tão profunda, que eu tinha de esperar a história terminar. A menina ficou encantada. Se engancharam novamente e saíram conversando, como um casal amoroso, de amor maduro, sereno. Um momento de felicidade, pensei. Simples, como a representação do desenho da historinha do vovô. Terminei minha corrida, meu alongamento e fui embora mais leve, deixando que o vento desmanchasse o meu cabelo, o sol esquentasse o meu rosto, a música do rádio tomasse o meu espírito.

P.S.: excepcionalmente postado nesta sexta-feira

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