sábado, 2 de novembro de 2013

Dilema

Fui diminuindo a velocidade pra ver se o sinal abria. Olhei pra mocinha de olhos amendoados, magrinha, loura, a pele branca castigada pelo sol, o suor lavando o rosto. Dignamente, fazendo o seu trabalho.
É por respeito a esses trabalhadores que ficam parados nos faróis, faça chuva, faça sol, que recebo os fôlderes com educação. No entanto, depois de alguns segundos, sem mesmo ler ou ver de que se tratam, deposito-os na sacolinha que fica pendurada no câmbio. Por fim, ao chegar em casa, ou no escritório, dou-lhes o devido destino: lixo.
Naquela manhã, porém, agi diferente. Como o sinal não abriu, abri o vidro do carro. Esperei por ela. Encarei-a com olhos de compaixão. Mas permaneci hirto, e fui firme: “Obrigado, meu bem. Não quero.” Ela não esboçou qualquer reação, talvez tenha levado muitos foras nessa vida de profissional dos fôlderes, talvez não tenha nem sentido. Simplesmente continuou sua labuta, e foi se achegar ao motorista de trás.
Mas eu senti, e aqueles olhos amendoados ocuparam meu pensamento por todo o final de semana. Havia nascido um dilema, e eu precisava resolver.
Honestamente, cansei de me ver entulhado de lixo todos os dias. Há cruzamentos em que não existe apenas uma lourinha de olhos amendoados, mas três ou quatro profissionais dos fôlderes, que me entregam dois, três, às vezes quatro papéis cada um. Como não tenho o menor interesse neles, tudo fica entulhado na bolsinha; depois, seguem para a lixeira. Nessa relação, eles fingem que fazem propaganda, e eu finjo que recebo. Outro dia a ficha caiu: “meu, para, vai! Para de enganação! Para de agir como um boneco condicionado”.
E isso é muito verdadeiro. Não tem sentido algum em receber um folheto para jogar no lixo. Tá certo que os costumes civilizatórios contemporâneos têm muito disso, de agir sem pensar, puro condicionamento, e eu estava sendo mais um boizinho na boiada. “Pô! Acorda, meu!”.
E foi assim que acordei. Ao ver a mocinha com um pacote de fôlderes na mão, na insegurança de meu primeiro não a essas criaturinhas dignas de Deus, eu tentei terceirizar a empreitada ao semáforo que me deixou na mão. Estufei o peito, olhei para a lourinha, e disse muito sem jeito: “Obrigado, meu bem. Não quero”.
Ah!, mas doeu. A impressão que me dava é que eu era um patrão despedindo um funcionário, mas sabedor de que aquele emprego, por mais simples que seja, era o máximo que ela tinha conseguido. E precisa dele. Precisa talvez pra sustentar sua filhinha, pra ajudar seus pais em casa, ou simplesmente para ter o que comer, um lugar pra morar, ou mesmo pra gastar na farra. O pensamento me desestabilizava e se multiplicava: “Sinto muito. A empresa está desativando o seu setor. Pode passar no departamento pessoal e acertar suas contas”.
Não. Isso não tá certo. A sociedade desumana precisa se humanizar, precisa oferecer meios de acesso ao conhecimento, precisa qualificar o conhecimento, precisa oferecer àquela trabalhadora simples e sem recursos, oportunidades para que ela possa estudar, fazer um curso, progredir. E precisa de lucidez para encontrar outras formas de fazer propaganda, mais limpa, menos custosa, parando de emporcalhar o ambiente com papel. Enquanto isso, ela vai continuar lá, a lourinha de olhos amendoados. Dignamente suando a camisa, fazendo o que pode.

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