sábado, 14 de dezembro de 2013

Adeus, companheiro

Depois de dezoito anos resolvi trocar o meu travesseiro. Isso é muito sério, amigo. Seríssimo. Se há alguém que me entende nas profundezas de minhas agruras; se há alguém que me ajuda a escarafunchar as raízes de minhas idiossincrasias; se há alguém que, silenciosamente, acolhe com boa vontade minhas lágrimas, minhas babas e meus fios de cabelo; se há alguém que é pau pra toda obra, esse alguém é o meu travesseiro, fundamento de uma existência sólida e afortunada, de uma manhã bem disposta e feliz. Você pode não ser feliz por muitas razões. Mas se você estiver insatisfeito com o seu travesseiro, apequenado e infeliz será para todo o sempre, a menos que o substitua. Imediatamente.
 Mas, não era o caso. Ao contrário. Tenho de admitir que se dependesse apenas de minha singela opinião, eu ficaria com ele por mais dezoito anos, ou até o fim da vida, quem sabe? Nos damos bem, mesmo juntos há tanto tempo. Eu já o conheço o suficiente para entender que a química que deve haver entre nós é tão importante quanto a química do amor, da paixão, do sexo. E a química no caso é perfeita. Por que trocar então, o nobre leitor deve estar se perguntando. Ora, meu amigo. Na vida, em todas as suas dimensões, precisamos aprender a ter flexibilidade mental, e quem divide leito e vida precisa praticar o exercício da audição e da reflexão de vez em quando, senão, ficam os travesseiros e vão-se os amores.
Na loja, a tentativa consistia em achar um substituto à altura. Percebi que a tarefa não seria fácil. Ainda que o travesseiro fosse confortável, aconchegante, macio, ele era virgem, e isso era um grande problema. Como todo travesseiro virgem, a impressão que dava era a mesma que você tem quando come uma fruta verde. Faltava vida naqueles mauricinhos, um calorzinho, vai. “A gente entende”, dizia-me a vendedora, com aquele jeito amável de ser. “Não se trata de uma simples troca de um objeto por outro”. Pensei: “objeto? Travesseiro? O meu? Quando? Onde?” 
Meu travesseiro tinha história, e por mais velho que fosse, ele guardava em sua essência dezoito anos de suores, babas, cabelos e o mais fino e doloroso repertório de pensamentos, que me fizeram marchar por rotas desconhecidas, que me fizeram tomar decisões, que me fizeram ser o que sou, embora às vezes tenha a impressão que não sou o que pareço ser. Isso dava a ele um valor maior, muito maior que qualquer travesseiro de penas de ganso. Lembro-me das viagens, a trabalho ou a passeio. Graças a ele, eu estava lá, hirto, firme, entusiasmado, no workshop ou nas areias da praia. Me sustentou macio, aconchegante, nas vitórias esmeraldinas, como também me aguentou sorumbático nas passagens de época, em que o Palestra quis dar uma flanada por outros mares, respirar novos ares, arejar a mente. Recebeu lágrimas quando meu velho partiu, equilibrou minha cabeça quando algumas máscaras caíram.
Cheguei em casa e pus os dois lado a lado. Minha mulher parecia assustada com minha reação. Deve ter pensado: endoidou de vez, mas não disse nada. Um, moderno, fresco, limpo, com formas arrojadas, mas estranho ainda. Um mauricinho, isso sim. O outro, velhinho, amarelo, caído. Lembrei-me de Dorian Gray. O peso dos anos tinha deixado meu amigo deformado. Isso era nítido na comparação com o outro. Adeus, companheiro.
“Meu bem, espere duas semanas. Depois você dá fim, tá!?”

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