sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Cadáver

Na melancolia do domingo à noite, depois de mandar uma pizza de calabresa pra dentro, debaixo de uma coberta quentinha já pensando nos problemas da segunda, eu senti, senti a frase aos pedaços invadindo o buraco do meu ouvido, frase que iria me acompanhar insistente durante toda a madrugada adentro: “Eu vi que era um cadáver ali”. Era a voz do professor Roberto Juliano sendo entrevistado pelo Abujamra, dizendo o que pensou ao se deparar com um pedaço de bife no prato. Depois de anos se lambuzando de carnes alheias, o professor, influenciado por sua filha, tornou-se um vegetariano.
Eu admito que nunca pensei nesse negócio direito. Por esse ângulo, então? Cadáver? Imagina aí você, sentadão numa churrascaria, mandando ver costela, picanha, alcatra, cupim, linguiça, coração, coxa, sobrecoxa, um boi inteiro, vai. Um boi só, não! Boi, porco, galinha, todos dilacerados pra você comer suas melhores partes, as mais macias, as mais suculentas e saborosas. Que desmancha-prazer esse professor, não? Cadáveres? Acordo de repente e começo prestar atenção na tevê. O professor teve diversas recaídas. Pequenas recaídas. Grandes recaídas. Mas o que me chama a atenção é o apelo que ele faz: “Esse negócio que a gente chama de carne é antes de tudo sofrimento. Sofrimento de animais como nós. O que está sendo feito neste planeta não deve continuar. A matança tem que parar”.
Penso no que li a respeito. Tá lá na memória, mas perdi a senha, he, he, he! Isso é Chico, tá? Há quem compare a matança desenfreada de animais ao holocausto. Elizabeth Costello usou essa imagem num de seus seminários: “O crime do Terceiro Reich foi tratar as pessoas como animais”. Issac Bashevis Singer fez um de seus personagens comparar o comportamento humano em relação aos animais com o comportamento dos nazistas em relação aos judeus. “Ele não diz que os crimes são igualmente maus, mas que ambos são baseados no mesmo princípio, de que poder é direito, e que os poderosos podem fazer o que quiserem com aqueles que estão em seu poder” (citado por Peter Singer, pg.103, A vida dos animais, J.M.Coetzee). O próprio Coetzee usou dessa técnica com a Costello.
Lembro-me daquele garotinho que se recusava a comer polvo. Ele perguntava onde estava a cabeça do bicho; a mãe, em vão, tentava explicar que o açougueiro tinha cortado, e que ali estavam as perninhas pra ele comer. “Ele morreu?”. “Morreu”, dizia a mãe. “Por quê?”. “Pra gente comer”. No seu purismo, livre dos condicionamentos humanos, ele retrucou dizendo que “não gostava que eles morressem”; que os animais tinham que ficar em pé.
Fico a imaginar o que alguém (claro, uma imagem hipotética, a imaginação pode tudo), um purista, alguém de um outro mundo, como o garotinho do vídeo, não maculado, não estragado pela civilização, pela diversidade retórica justificando tudo, o que esse alienígena, ainda livre das mais refinadas explicações filosóficas iria achar de tudo isso.
Longe de ser Deus, o professor quer mudar as pessoas. Não quer mais saber dessa matança, de reunião em torno de churrasqueiras e churrascarias. Ele pode até não ser Deus, mas já pode se orgulhar de produzir criaturinhas. Não tão habilidosas como o homem, mas não menos densas. Essa pulga aqui atrás da minha orelha? O que é senão obra e graça desse professor?
P.S.: excepcionalmente postado nesta sexta-feira. Bom Natal, meus queridos! Valeu!!!
 

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