sábado, 5 de abril de 2014

Perrengue

O telefone da repartição estava ocupado. Aderbal, um fiscal de obras à beira da aposentadoria, tentava resolver de uma vez o problema do cancelamento do cartão.
“Bom dia! Aderbal da Silva. Eu queria cancelar meu cartão de crédito. Sim, está no meu nome. Como? Seis meses. Não, eu uso muito pouco. Não, não interessa. Meu CPF? Claro! É 068XXXXXX-XX. Sim, obrigado.” Eu continuava trabalhando na conferência de uns documentos, mas não tinha como não prestar atenção na conversa. “Ela me passou para outra pessoa. É a chefe dela”, diz, muito compenetrado.
“Pois não? Ah, sim! Meu nome? É Aderbal da Silva. Eu queria cancelar meu cartão. Cartão de crédito. Sim, no meu nome. Seis meses, mais ou menos. Então, não compensa manter o cartão, você entende, né? A taxa é alta e eu uso pouco. Não, não interessa. Não, mocinha, muito obrigado, mesmo assim prefiro cancelar mesmo. Não interessa, não. É 068XXXXXX-XX. Sim, sim. Rua Félix Guisard, XX, Belém. Taubaté. Ah, pois não.” Ele, agora tapando o aparelho, diz baixinho: “É muita burocracia. Me passaram para outra pessoa”. Depois de alguns minutos, ele retoma a conversa:
“Pois não? Ah, sim! Meu nome? Poxa... é Aderbal da Silva” — vejo ele murchando — “Eu gostaria de cancelar o cartão” — e ficando vermelho. “Está no meu nome. Aderbal da Silva!” — aumenta o tom da voz — “Eu não quero mais! Não interessa! Não, mocinha, não interessa, eu quero cancelar mesmo! É 068XXXXXX-XX. RG? Poxa, mas vocês são enrolados demais, agora o RG? É 18XXXXXX. Félix Guisard, XX, Belém. Mocinha!? Moc... Como assim? Ah, não, não é possível! Ela me passou para outra pessoa!”. Eu, por dentro, choro de rir. Coitado do Aderbal. Mas o pior ainda estava por vir. “Caiu a ligação. Não é possível! Caiu a ligação! Ah, não vou fazer mais isso agora! Tenha santa paciência!”. Vejo-o bater o fone no gancho e sair bufando.
Esta cena, real, aconteceu em 1990, num departamento da Prefeitura de Taubaté. De lá pra cá, já se vão mais de 20 anos. O leitor há de concordar comigo que seria razoável conceber que um “Perrengue de Aderbal” (vamos cunhá-lo assim?) ficou no passado, quando o sistema SAC engatinhava, quando nós tínhamos ainda uma constituição fresquinha, código de defesa do consumidor debutando, mal tínhamos linha telefônica à disposição e pessoas defendendo os interesses da classe consumidora.
Hoje, tudo mudou! Claro! O sistema tomou banho de tecnologia, abriu-se o mercado, vieram as operadoras. Portanto, nem dei bola quando um raio detonou o modem da minha internet. Que isso! Fácil! Vou ligar, informar o problema, e rapidamente eles vão resolver. Traz um modem novo, leva o queimado. Simples.
Ledo engano. Descobri que o perrengue é mais sofisticado, mas continua, e o sofrimento é o mesmo. Primeiro, pra ser atendido. Numa das vezes (foram várias, é claro), cheguei a ficar esperando no telefone mais de duas horas. Depois, a virtualização. O virtual, que está na nossa casa, no namoro, na amizade, no sexo, agora também tá no serviço de assistência técnica. Eles não querem mandar um técnico na sua casa, eles querem resolver de lá. Mesmo eu informando que o modem tava mais morto que D. Pedro I. Lembrei-me do Aderbal. Sem chorar de rir, é claro.

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