sábado, 10 de novembro de 2012

O cemitério


Minha mulher para o carro, me deseja bom dia, me dá um beijo e vai. Fico na marginal da Dutra. Atravesso a rua e me instalo num ponto de ônibus defronte à rodovia.  O concreto gela minha bunda, mas não me incomodo. Tá calor. Pego a agenda, dou uma olhada, espero minha carona: o Eduardo.
À minha frente, o cemitério municipal. Pomposo. Cinzento. Gozado isso. Todo cemitério que conheço é colorido. Túmulos de múltiplas cores. Um mosaico. Em Taubaté, não. Em Taubaté, o cemitério é cinza.
Árvores frondosas e árvores secas. Algumas pessoas caminhando por entre os túmulos. Um cachorro. Fecho a agenda. A imagem é mais interessante.
Não consigo deixar de notar, à primeira vista, e com certo escárnio, confesso, o texto esculpido no verdejante barranco ao lado da rodovia, ao pé do cemitério (a imagem sobreposta dá a sensação de uma coisa só), ressaltando o fato de Taubaté ser a capital nacional da literatura infantil, obviamente por ser a cidade de nascimento de Monteiro Lobato. Um texto colocado ao pé do cemitério. Eta, falta de imaginação desses politiqueiros!
Lobato não está enterrado lá. Até poderia, mas não está. Algum desavisado pode fazer a associação. Não. Não tem nada a ver. Mas outras associações até caberiam, não? A cidade morta lá em cima (o cemitério), o Cidades Mortas, livro do Lobato, e, como não pensar também, a cidade morta aqui embaixo, que a cada dia morre um pouco mais pelas mãos de políticos desonestos e incompetentes. Pronto! Associação feita! A morte como elo. Bingo!
E é carro que vem. Carro que vai. Parece um jogo de tênis. A bolinha pra lá. A bolinha pra cá.
Lembro-me que, quando criança, eu gostava de ficar espiando pelos vãos das sepulturas, nas visitas que fazia acompanhado de minha avó, ao túmulo de meus bisavós. Um costume, digamos, lúgubre. Lembro que era um pouco escuro lá dentro; eu, na minha santa ingenuidade, tentava ver se tinha movimento, qualquer movimento, alguma coisa do outro mundo, uma alma penada.
Fico pensando qual seria a minha reação se alguém saísse lá de dentro no exato momento em que eu espiava. Não alma penada da minha fantasia, isso não existe. O coveiro, por exemplo. De repente ele podia estar dentro de um, ajeitando as coisas a mando da família, separando o saco de ossos, abrindo lugar pra mais um infeliz. Eu mijaria nas calças, ah, mijaria!
E como esquecer a piadinha contada aos quatro ventos pelo Monsenhor Antunes, grande amigo? Na mesa cheia de comida, ele desfiava o repertório. E depois de tantas piadas e cervejas, ele vinha com essa: “O avião caiu. Foram encontrados dez mil corpos.” Hã? Como? “Ele caiu sobre um cemitério,  he-he-he!”
Penso na calmaria que deve estar lá. Aqui é carro que vem, carro que vai. Barulho de motor. Fumaça saindo pelos escapamentos. Ventania. Um senhorzinho vendendo passe. O pai e o filho preocupados querendo saber se o ônibus pra São José dos Campos já passou. O policial rodoviário federal esperando a viatura, com uma arma de cabo amarelo de um lado, uma de cabo preto do outro, falando ao celular, falando não, gritando! (o barulho dos carros não o deixa ouvir a própria voz, então ele grita, grita sem parar). Carros brigando para ver quem entra primeiro na rodovia. O estardalhaço normal de começo de dia.
Mas lá não. Lá deve estar um marasmo só. Deve dar para ouvir os passarinhos, a folha da árvore caída no chão sendo arrastada pelo vento, um bate papo que vem de longe, sentir cheiro de flor.
Pensando bem... Prefiro este estardalhaço mesmo. Apesar de tudo, aqui é bem melhor. Tem dias até que dá pra deitar o corpo numa redinha instalada de frente para o mar, ao som das ondas, bebendo água de coco, comendo camarão.
E é carro que vem, carro que vai.
Na minha frente o cinzento cemitério. A imagem é insistente. Abro novamente a agenda, mas não consigo desligar. Em seus domínios adormecem os restos mortais de boa parte de minha gente. Homens e mulheres sadios, e gordos, e famintos, e risonhos. Gente que bebia, que comia, que falava, que transava, que brigava, que se emocionava, que rezava, que vivia. Nem quero saber o que sobrou deles.
Meu pai está lá. Não. Não está. Meu pai está aqui. Comigo. Sempre esteve. Desde quando sua luz apagou. Lá está o que sobrou do seu corpo. Matéria. Casca. Meu pai era muito mais que um corpo, que matéria, que casca. Meu pai era a gema do ovo.
Às vezes me pergunto como vou encarar a morte. Espero que com serenidade. É um fechar de olhos. Pronto. Acabou. Não dá pra ficar pensando no resto, como as coisas vão ficar, se os filhos estão encaminhados, se a mulher vai arrumar outro. E os meus projetos? Vou ter de interromper todos? Etc., etc. Vou ter de interromper... Vão te interromper! Não é você que aperta o botão da luz !
A morte é pior para quem fica. Que sofre a ausência, a saudade. Pra quem vai é um sono. O que você sente quando dorme? Pois é! Nada! É a morte! Um sono. Um sono sem sonhos (alguém já disse isso).
Minha carona chega. O Eduardo ao volante. A Tereza ao lado.
Bom dia! Olho para trás e ele está lá. Cinzento. Frio. E me encara novamente. Trocamos olhares. Seu olhar é muito parecido com o olhar de quem tá dando mole. Confesso que nunca fui de desprezar uma flertada. Mas... Neste caso... Sinto muito. Sou um homem comprometido. E fiel.
Acelera este carro, Edu!

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