terça-feira, 5 de junho de 2012

Tal qual um bailarino

Ele espera altivo o momento de entrar em cena. Nunca esteve tão bem. Esqueceram-se dele nos últimos tempos. Ficou abandonado, largado mesmo, tal qual brinquedo velho, rapidamente esquecido com a chegada do novo. Eles fazem assim com qualquer um. Tal qual notícia de tragédia. Basta uma notícia nova, um escândalo, uma celebridade morta, para esquecerem a outra. Foi assim também com ele. Ela chegou e pronto. Não lembravam nem mais dele, nem da ponta. Era só ela, ela, ela. Colorida, com suas roupas transparentes, suas plumas azuis ou de vestido vermelho. Tal qual um pavão enorme que se abre formosamente. Nos bastidores chegou até a ouvir que seus dias estavam contados, que não servia mais pra nada, tal qual faca sem gume. O pior foi a autoestima. Ele mesmo começou a se convencer que estava acabado. E ela ali ao lado, pintando e bordando, bem disposta, nem se cansava a danada! Começava a deslizar e ia. Ele não. Sempre precisava de um tempo, um pit stop para respirar, uma nova ponta. Não tinha mais aquela força do começo, aquele ímpeto, a velocidade de um gavião. Mas não! O pior é que não era nada disso! Ou melhor, é claro. Como estava enganado! Como todos estavam enganados! Ele quase tinha morrido por não suportar o peso do fracasso. Mas descobriu que ainda era especial. Ela... He-he-he! Com ela só teriam prejuízos. De que serviria suas fantasias coloridas, seu ar de superioridade, sua longevidade? Só ele tinha a técnica, a precisão, a capacidade inigualável de deslizar por aqueles palcos. Até inventaram a tal da ponta fina. Não, não. Nem ponta fina nem nada. Era preciso alma. E ela podia ter tudo, mas alma ela não tinha. Ele tinha. Só ele conseguia dar alma ao espetáculo. Sem contar a possibilidade de fazer ajustes durante a apresentação. Improvisar. Voltar atrás. Ir adiante. Mudar e começar tudo outra vez. Ela? Coitada. Se andava mal o estrago tava feito. Não voltava atrás. Opa! Chegou a hora? As luzes estão acesas? Já o estão carregando para o palco? Que beleza! No trabalho feito ele percebe os traços de ontem. Que elegância! Que obra-prima! Ele já está pronto. Sente a pegada firme. E começa a deslizar.


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Comunicado

O autor informa que suas crônicas estão sendo publicadas com exclusividade na página Crônica do Dia ( www.cronicadodia.com.br ). Convida...